15 
25ABR19

MICHELANGELO DI LODOVICO BUONARROTI SIMON - o DIVINO
Figura 15.1 . Pietà Palestrina . 1555 . Miguel Ângelo 

Falar de um dos grandes arquitectos do Maneirismo, Miguel Ângelo, também pintor e escultor não é fácil. Foi dos maiores que o Mundo jamais viu, activo desde os finais do século XV até à sua morte, em meados do século XVI, com quase 89 anos. Começo não com uma obra de arquitectura, mas com uma escultura, uma das suas Pietà (figura 15.1). Esta, Pietà Palestrina, é de um realismo e de uma humanidade confrangedores, que o não acabado da peça ainda mais sublima (há controvérsia sobre quem tenha acabado a escultura, se Bernini ou se Menghini)

Em 1521 começou a edificar-se a Sacristia Nova de São Lourenço (figura 15.2), encomenda de Leão X e sugestão do futuro Papa Clemente VII, para mausoléu da recém-nobilitada família Medici. 

A Sacristia/capela destinava-se a quatro Medici: Lourenço, o Magnífico e a Giuliano, seu irmão, e também a Lourenço, Duque de Urbino e Giuliano, Duque de Nemours. 
Figura 15.2 . Sacristia Nova . São Lourenço . Florença . 1521/34 . Miguel Ângelo 

Este espaço é considerado como uma das obras-primas da Arquitectura de todos os tempos, assim como as duas estátuas alusivas aos duques, assim como também as quatro estátuas reclinadas sobre as rampantes curvas que se sobrepõem aos dois túmulos. Sobre o de Lourenço (figura 15.3, à esquerda), Duque de Urbino, pousam o Crepúsculo e a Aurora, sobre o de Giuliano, Duque de Nemours (figura 15.3, à direita), pousam a Noite e o Dia.

Miguel Ângelo representa as quatro fases do dia, assim esculpidas. 
Figura 15.3 . Túmulo do Duque de Urbino e túmulo do Duque de Nemours . Crepúsculo e Aurora . Noite e Dia
Miguel Ângelo

Para além das notáveis esculturas dos homenageados e da “licença das fases do dia se recostarem” por cima de rampantes, Miguel Ângelo também “esculpe” as paredes dividindo-as em três tramos separados por pilastras, a b a, com as figuras enquadradas nos tramos b, em nichos rectangulares, e as edículas laterais, os tramos a, sobrepostas por frontões curvos apoiados em mísulas (figura 15.4)
Figura 15.4 . parede de topo da Sacristia Nova . Miguel Ângelo

Sobre estes três tramos da parede sobrepõe-se um entablamento de arquitrave saliente como uma cornija, friso alto e uma cornija em pietra serena, cinzento escura, fazendo contraste com o mármore claro das esculturas e parede (figura 15.4), tal como o interior da igreja. Esta arquitrave faz parte do entablamento que coroa as quatro paredes que perfazem o perímetro. O friso deste entablamento é uma faixa lisa e branca, coroada por uma cornija de pietra serena. Não é de excluir-se a hipótese de Miguel Ângelo ter seguido a mesma concepção bi-cromática de Brunelleschi. Por cima, desenvolve-se um ático-piso, divido em três tramos, a b a, sendo os a mais estreitos e abrindo-se em janelas com uma configuração de exterior. Janelas rectangulares, “ajoelhadas” e rematadas por forte frontão triangular. Estes três tramos são divididos por pilastras, também coríntias como as do piso inferior, sendo o tramo intermédio dividido em duas partes resultantes de num primeiro nível se abrir um arco que se apoia na cornija do entablamento, e a parte de cima, entre o extradorso do arco e a cornija que remata as paredes, se mostrar uma parede com ressaltos que parecem denunciar uma hipotética estruturação. Acima desta cornija, e sobre as quatro paredes desenham-se quatro arcos, que se tocam nos arranques, e que constituem os suportes para as trompas que sustentam a cúpula (figura 15.5)
Figura 15.5 . Cúpula da Sacristia Nova . Florença . Miguel Ângelo 
Nestas quatro paredes de superfície em semicírculo, rasga-se, em cada uma, uma janela, também com a feição de exterior, coroada com frontão curvo, mas com uma característica muito sui generis: as ombreiras estreitam-se, à medida que se aproximam da padieira, numa clara interpretação de um trompe l’oeil, tridimensional, fazendo aumentar a leitura da altura das janelas, como mostra a figura 15.6.
Figura 15.6 . Janela em trompe l'oeil das paredes da cúpula da Sacristia Nova . Miguel Ângelo
Esta sacristia/capela, implantada no topo do transepto da Epístola, de São Lourenço, tem a mesma dimensão da Sacristia Velha, de Brunelleschi, aposta ao topo do transepto do Evangelho, no mesmo complexo.

Outra das obras incomparáveis que nos legou Miguel Ângelo também se encontra neste complexo conventual: a Biblioteca Medicea de São Lourenço, onde uma magnífica sala de leitura (figura 15.7) proporciona um ambiente de estudo e meditação; uma obra-prima sem paralelo. 
Figura 15.7 . Sala de leitura da Biblioteca Laurenciana . 1523/25 . Florença . Miguel Ângelo
Mas o projecto da Biblioteca nunca chegou a seu termo, dado que ficou por edificar o terceiro elemento que seria a sala que Miguel Ângelo previu, de planta triangular, conforme o desenho 15.8 mostra, em todo o seu arrojado traçado. Esta sala triangular, bastante fora do comum, seria destinada ao depósito de livros raros.
Figura 15.8 . Sala dos livros raros (projecto) . Biblioteca Laurenciana . Miguel Ângelo
Figura 15.9 . Vista do átrio da Biblioteca Laurenciana . 1523/25 . Florença . Miguel Ângelo
Desde o início que Miguel Ângelo sabia que a entrada a realizar-se neste espaço estaria fortemente condicionado e somente se poderia fazer de lado e não axialmente, como parece indicar a intenção de projecto. Portanto, a partir do claustro do Convento, depois de se entrar neste átrio, do lado esquerdo, aparece esta escadaria tripla que a 2/3 da sua extensão se reúne numa única. Para quem sobe por um dos lances laterais terá que ter em atenção porque não há qualquer espécie de patamar no lance central para nele se transferir a ascensão iniciada; apenas um degrau, a 90º, e há apenas que se tomar atenção para não se pisar no degrau errado! Miguel Ângelo cria um espaço arquitectónico independente unicamente para conter uma escadaria e nada mais (figura 15.9)
É um verdadeiro luxo quer arquitectural, quer arquitectónico! 
As paredes deste espaço constituem um dos momentos arquitectónicos mais sublimes do maneirismo, onde se glosam os elementos arquitectónicos de um modo, ou seja, de uma maneira verdadeiramente extravagante, verdadeiramente surreal se atendermos aos significados dos elementos construtivos estruturantes! As colunas, sendo consabidamente elementos de estruturação vertical, apresentam-se aqui geminadas e colocadas em nichos, alternando com tramos de paredes contendo janelas, cegas, de ombreiras trapezoidais, querendo negar as respectivas alturas com o recurso a um efeito trompe l’oeil (figura 15.10), no sentido de quem entra, as achar mais baixas. Os frontões são alternadamente curvos e triangulares. Por cima de cada uma das janela inserem-se outras, quase quadradas, também cegas, rematando-as uma guirlanda, em vez de frontões. Elementos vegetalistas em vez de estruturas pétreas próprias de frontões. 
Figura 15.10 . Átrio de entrada para a Biblioteca Laurenciana . 1523/25 . Florença . Miguel Ângelo
As colunas assentam sobre uma cornija que remata o "estilóbata" e, por baixo de cada coluna, desenvolve-se uma mísula. A coluna, suporte vertical por excelência, é "emparedada e encaixada". Semelhante “incoerência” estruturante é difícil de se perceber. 
Só mesmo um espírito maneirista para transformar uma estrutura porticada em estrutura maciça!
Nunca pude deixar de associar o “aprisionamento” das colunas à agonia dos escravos que Miguel Ângelo esculpiu – e eu manipulei, na direcção horizontal -- como exemplifico na figura 15.11. 
Figura 15.11 . Composição de imagem do Vestíbulo da Biblioteca com os Escravos moribundos . 1513 (ca.)
Miguel Ângelo
Figura 15.12. Projecto para a fachada de São Lourenço . 1515 . Florença . Miguel Ângelo
Antes de deixarmos o complexo de São Lourenço, um apontamento sobre a sua fachada, já anteriormente referida como tendo sido objecto de um concurso para a sua execução.


Dadas as maravilhas técnicas, hoje possíveis, eis uma mostra da provável “realidade” (figura 15.12) miguelangelesca, datada de 1515, quando o arquitecto a apresentou a Leão X.
Figura 15.13 . Abside e lado do Evangelho da Basílica de São Pedro . Miguel Ângelo 

A fachada tardoz da Basílica, desenho de Miguel Ângelo (figura 15.13), aparenta uma simplicidade extrema: apenas um estrato e um ático-piso. No entanto, passemos a analisá-la: toda a superfície que acompanha os lados do Evangelho e da Epístola, bem como o topo da abside e, ainda, os vértices rectos, que separam os extremos do transepto da abside, alternam num ritmo a b a. A separação entre tramos é feita à custa de pilastras duplas sobrepostas a lesenas, e as mudanças de direcção reentrantes têm pilastras sobrepostas triplicadamente. Os tramos a têm três aberturas, em arco, sobrepostas, sendo as de baixo fechadas, como nichos. As de cima, abertas, têm uma guarda de pedra, transformando-as assim em sacadas. Os tramos b denunciam dois pisos, sendo as janelas de baixo fechadas. As molduras destas janelas são de elaboração extremamente requintada, assentando os frontões das janelas de baixo sobre mísulas que se sobressalientam às ombreiras, e sendo as aberturas de cima sacadas, com guardas de pedra semelhante às das dos tramos a. Os frontões destas janelas são alternadamente, nos tramos b, triangulares e curvos. No ático-piso, e nos tramos b abrem-se janelas rectangulares, deitadas, coroadas por cornija interferida por óculo oval, também deitado, e por mísulas descarregando sobre as ombreiras. Os tramos a deste ático mimetizam as pequenas janelas/nichos dos panos inferiores. Todo o perímetro assenta sobre uma espécie de estilóbata, baixo, e a parede remata sob um entablamento fortíssimo, correspondendo à ordem coríntia. Sobre esta, um ático portentoso, com um remate superior reduzido ao mínimo, reproduzindo o perfil dos capitéis das pilastras. 



a seguir (9MAI19):

16
Miguel Ângelo (conclusão)

JACOPO SANSOVINO - Dois Palácios Venezianos e a simetria implícita
14
11ABR19
MICHELE SANMICHELI - o ARQUITECTO da SERENÍSSIMA


Em 1527, em Verona, conclui-se o Palazzo Canossa (figura 14.1), obra do notável arquiteto Michele Sanmichelli. De dois estratos, será mais uma fachada a revelar a ascendência bramantesca da chamada Casa de Rafael. O piso térreo, de estereotomia acusando toda a interpenetração e sobreposição da construção pétrea, abre-se em três arcos centrais, sendo o do meio destinado a porta de acesso à casa, e tendo os outros dois arcos varandins com balaustradas que são suportadas por três mísulas. 
Figura 14.1 . Palazzo Canossa . 1527 . Verona . Michele Sanmicheli 
De cada lado das três portas abrem-se duas janelas com as padieiras resolvidas em falsos arcos, tripartidos, correspondendo às três aduelas de fecho, de forte expressão. Estas mesmas configurações fecham superiormente os postigos, supostamente de uma cave, sobre os quais se implantam as já citadas janelas. Sobre estas abrem-se janelas rectangulares de um provável mezanino. Divide os dois pisos uma cornija arquitravada, bastante baixa, sobre a qual se desenvolve um ático-dado, acusando as saliências correspondendo aos pedestais das pilastras que compõem o andar superior. Este é dividido em sete tramos, separados por pilastras geminadas, tendo os tramos extremos a pilastra exterior mais salientada em relação ao seu par. As janelas deste piso são encastoadas em falsas serlianas, constituídas por pilastras, mas com os tramos rectos cegos. Acima dos arcos das janelas corre um friso, de pouca expressão que, sendo contínuo, é sobreposto pelas pilastras. Acima das janelas deste piso abrem-se janelas rectangulares deitadas, indicativas de um mezanino. 
Remata esta fachada um entablamento de cornija bastante projectante e sobre o qual se desenvolve uma balaustrada de forte expressão, que contém elementos fechados, duplos, dando correspondência axial e continuidade visual às pilastras geminadas do andar nobre. Cada um destes elementos duplos, constituindo-se quase como acrotérios, serve de suporte a esculturas, provavelmente alusivas a divindades ou heróis mitológicos. 


De 1532 data outro palacete, o Palazzo Bevilacqua (figura 14.2), também em Verona. 
Tem dois estratos e dois pisos e, apesar de ter sete tramos, número ímpar, tem, no entanto, a porta de acesso descentrada, inserida no segundo tramo do lado esquerdo da fachada. De notar, no entanto, que as janelas dos tramos b estão inseridas em arcos refundados, da mesma feitura do tramo de entrada. Os tramos incutem um ritmo a b a b a b a, sendo os a os mais estreitos. 
Os tramos do piso térreo são separados por pilastras dóricas, sem base. Esta escolha de Sanmichelli deve-se ao facto de ter sido provavelmente o único arquitecto desta época, a ter viajado pela Grécia, razão pela qual a ordem dórica é destituída de base. Curiosamente, seriam precisos mais de duzentos anos para que alguma da arquitectura neoclássica assumisse o mesmo despojamento das bases, numa procura da autenticidade das fontes gregas. 
Figura 14.2 . Palácio Bevilacqua . 1532 . Verona Michele Sanmicheli
Exceptuando a porta de entrada, o piso térreo tem uma janela em cada tramo, tendo todas lumes iguais, independentemente de os tramos serem desiguais, alternado entre a' e b', como os do piso de cima. As janelas recortam-se, em arco de volta perfeita, acusando-se a estereotomia com as respectivas aduelas. Cada pedra de fecho tem um pequeno busto esculpido. As janelas são “ajoelhadas”. Divide os dois estratos uma proeminente varanda que se apoia num entablamento em que o friso se salienta em triglifos e se projecta para apoio da cornija, bastante projectada, que divide os pisos. A guarda da varanda é em balaustrada intervalada por pedestais. 
O andar nobre evidencia bastante mais a diferença entre as dimensões dos tramos, ao distinguir, também em tamanho, os arcos que se abrem nas duas diferentes dimensões. Assim, os arcos dos tramos a são coroados por frontões, triangulares nos tramos extremos, e curvos nos tramos do meio. Por cima destes frontões abrem-se janelas rectangulares, deitadas de um possível mezanino. Os três tramos b abrem-se em arcos que alcançam a arquitrave do entablamento que coroa o edifício. Nos esquadros destes três arcos anicham-se figuras reclinadas, que tocam os extradorsos e a parte inferior da arquitrave. 
O entablamento tem uma fortíssima expressão. A arquitrave é resolvida por quatro camadas sobrepostas, o friso é esculpido em duas faixas com motivos diferentes e, por fim, a cornija lança-se sobre cachorros de forte expressão. 


De 1535 a 1540, Sanmichelli constrói ainda uma terceira casa, o Palazzo Pompei (figura 14.3), também em Verona. 
Sem querer ser fastidioso com a descrição de mais um edifício, apenas um breve apontamento, como se de uma súmula se tratasse. O exemplo de Bramante foi seguido, não haverá grandes dúvidas, aliás como se poderá constatar ao longo da incursão nesta "estória" da arquitectura. 
Os dois pisos e dois estratos, piso térreo de estereotomia vincada, segundo piso de superfícies alisadas, insere-o na tipologia dos dois palacetes anteriores. Também tem sete tramos, os rasgamentos todos de arco, quer nas janelas do primeiro piso quer na porta do primeiro e portas do segundo piso. As janelas do primeiro piso são também “ajoelhadas”, sob as quais se abrem postigos de cave. Curiosamente, esta fachada, na sequência das primeira duas, parece ter atingido uma espécie de auge de uma busca linguística. Parece que se atingiu uma sobriedade, uma serenidade que as outras duas fachadas não tinham.
Figura 14.3 . Palazzo Pompei . 1535/40 . Verona . Michele Sanmichelli 
Mais interessante, menos interessante? Caberá a cada um ponderar. 

A Michele Sanmichelli ainda se deve o Palazzo Grimani di San Luca, em Veneza. Parece que os três anteriores, que acabámos de ver, se tivessem erigido como um primeiro fôlego para esta obra de maior pujança. Tem três pisos e três estratos, conformando-se a sua fachada num quadrado. Apenas utiliza uma ordem, a coríntia, ainda que no piso térreo ela se mostre através de pilastras e nos pisos superiores através de colunas apostas à superfície plana. 
O ritmo dos tramos é próximo dos do Palácio Bevilacqua (figura 14.4), ainda que a diferença entre os tramos a e tramos b não seja muito notória. No segundo piso, os tramos b, que medeiam entre os tramos a, dos extremos e do central, rasgam-se em portas rectangulares sobrepostas por janelas também rectangulares mas deitadas, possivelmente bandeiras. Uma varanda abalaustrada serve de anteparo aos vãos. Os tramos a resolvem-se em portas de arco, cujo extradorso se encosta ao entablamento que o separa do piso de cima. Este piso repete o mesmo tipo de desenvolvimento dos vãos do piso inferior com a diferença de os vãos serem janelas e não portas como as do segundo. O piso térreo tem uma composição primorosa, com um arco central mais largo e mais alto do que os dois arcos laterais, nos três tramos centrais, quase que reinterpretando uma serliana. Nos dois tramos laterais abrem-se janelas de molduras trabalhadas, arquitravadas e “ajoelhadas”. Por cima destas janelas abrem-se outras iguais às que se abrem por cima dos arcos mais pequenos. O arco maior orna-se com duas figuras reclinadas preenchendo os seus esquadros. 
Figura 14.4 . Palazzo Grimani di San Luca . 1556 . Veneza . Minhele SanMicheli
O entablamento que divide os dois pisos superiores é o mais estreito dos três que marcam esta fachada. Os outros dois entablamentos são mais altos e bastante mais protuberantes, um pela varanda balaustrada e o superior com a cornija denticulada. Esta diferenciação de alturas de entablamentos e simplificação do entablamento do meio consegue estabelecer uma certa distinção entre a base – qual crepidoma – dos dois pisos – qual templo -, como se estes fossem unicamente um só. 
Reforçando esta leitura, é de reparar que os dois andares se dividem por colunas, têm superfícies de rasgamentos maiores e, pelo facto de somente uma coluna e um pilar separarem os tramos do meio, b a b, remetem estes três tramos para uma leitura de serlianas sobrepostas que, por sua vez se sobrepõem à já referida do primeiro piso. Trata-se, efectivamente, de uma fachada das mais bem conseguidas do maneirismo, tantas as leituras que se podem fazer! E o requinte deste palácio não para de causar surpresas como, por exemplo, a sua entrada, de “pompa e circunstância” com uma serliana tridimensionalizada e triplicada planimetricamente como indicam as figuras 14.5 e 14.6. 
Figura 14.5 . Palazzo Grimani di San Luca (planta). Minhele SanMicheli 


Figura 14.6 . Palazzo Grimani di San Luca (porta de acesso). Minhele SanMicheli
Como se não bastasse o requinte da linguagem exterior, o átrio deste palacete é deveras impressionante com o tecto (figura 14.7) em cúpula de superfícies parabolóides, formando, em planta, um quase quadrado, e resolvidas por pequenos caixotões com um rosetão central. 
Figura 14.7 . Tecto do Palazzo Grimani di San Luca . 
Suspenso do centro do tecto, baixa a estátua interpretando “O Rapto de Ganimedes”.
Figura 14.8 . Átrio do Palazzo Grimani di San Luca . Veneza . Michele Sanmicheli 
Não menos impressionante é a arquitectura deste átrio (figura 14.8), com paredes divididas em três tramos, a b a, separados por pilastras jónicas. Cada tramo a tem inserida uma janela “ajoelhada” sobre um recesso rectangular, fazendo lembrar uma porta cega. As rampantes que perfazem o frontão apoiam-se em arranques de uma pseudo-arquitrave que se interrompe, o mesmo se passando com o entablamento do frontão curvo que remata o tramo central b. A edícula central é de concepção muito estranha, repetindo os frontões com apenas rampantes e sem arquitrave, e os pequenos suportes verticais parece apoiarem-se em mísulas desmesuradas. No meio insere-se um nicho. 


Não só palácios se ficou a dever a Sanmichelli. Também à defesa de cidades ele nos legou a sua arte requintada como, por exemplo, a três portas de cidades.
Ainda que a Porta Nova de Verona hoje não se mostre assim, o belíssimo desenho da figura 14.9 mostra no que consistiam estas portas das entradas das cidades, através do seu corte longitudinal. Contudo, o desenho da face externa da porta foi modificado nos anos 8oo, sob domínio Austríaco.

Figura 14.9. Porta Nuova (Alçado exterior e corte) . 1532/40 . Verona . Michele Sanmicheli 
Depois da delicadeza com que Sanmichelli desenhou as fachadas dos palacetes que vimos, esta porta da cidade de Verona impõe a sua presença defensiva de um modo absolutamente irrepreensível.

Também a Porta Terraferma, em Zadar (figura 14.10), cumpre, com elegância mas também com a sensação de inexpugnabilidade, a razão de ser da sua existência. Mais uma vez a ordem dórica, exaltada tanto nas pilastras extremas, como nas colunas sem indicação de base, à Grega. O dórico expressa-se com vigor também no entablamento, a que não faltam os crânios de boi ocupando vez sim, vez não, as métopas.


Figura 14.10 . Porta Terraferma . Zadar (Croácia) . Michelle Sanmicheli 
A composição advém de um crepidoma alto, dividindo-se a parede em três tramos, sendo o do meio resolvido por arco perfeito. Este arco é rematado também por uma pedra de fecho que se agiganta e se une a um friso bastante alto que se prolonga pelos dois outros tramos. Sobre a porta principal, a figura tutelar do leão alado, símbolo de Veneza.
Robusta, dissuasora de atentados, cumprindo, afinal, o destino para que foi criada.
Figura 14.11. Porta Palio (interior) . 1550/61 . Verona . Michele Sanmicheli 
A Porta Palio (figura 14.11) tem uma característica muito sui generis pela grande diferença linguística entre a face interna e a face externa.
Pelo interior, a estereotomia é apenas dada pelo assentamento horizontal das pedras, mal se registando as juntas verticais. Logo, a sensação de maior dinâmica e horizontalidade é conquistada. As únicas excepções são as aduelas dos arcos de volta perfeita e, curiosamente, um pequeno/grande pormenor, que consiste nos fechos dos arcos serem anunciados por pedras que se projectam por forma a parecerem mísulas fortes a apoiar o grande entablamento, bem desenhado, a que não faltam os tríglifos e as métopas 

Anteriormente já foi aludido que Sanmichelli foi dos raros ou, talvez mesmo, o único arquitecto que esteve na Grécia, na passagem para Creta. Como tal, observou que a ordem dórica deveria ser empregue sem as bases nas colunas, assentando estas directamente sobre o estilóbata. E, de facto, esta construção colossal que se divide em cinco tramos, é de uma extraordinária força interpretativa maneirista. 
Figura 14.12. Porta Palio (exterior) . 1550/61 . Verona . Michele Sanmicheli 
Curiosamente, porém, a face exterior da porta (figura 14.12), que permitia a passagem ao viandante, tem uma face mais elaborada com os seus sete tramos de ritmo a b a b a b a em que somente os b se rasgam. Os 2º e 6º vãos abrem-se em portas encimadas por frontões triangulares assentes em mísulas que enquadram os extremos superiores das modinaturas das couceiras. O vão central abre-se em porta larga, de "arco-recto" com as aduelas bem expressas bem como, aliás, os remates das outras duas paredes contendo as portas. A rematar toda a composição um portentoso entablamento dórico sobre oito colunas dóricas que, curiosamente, assentam sobre bases convencionais contrastando com as colunas dóricas, sem bases, da face interior da porta. Estas colunas também contrastam com as interiores, cujos fustes são compostos por toros,  pelo facto de apresentarem caneluras, como o dórico expectável.

a seguir (25ABR19):
15
MICHELANGELO DI LODOVICO BUONARROTI SIMON - o DIVINO