24 
29AGO19

As Igrejas de Palladio - II

Depois de havermos visto San Giorgio Maggiore, também em Veneza mas noutra ilha da laguna, a ilha de La Giudecca, ergue-se a obra-prima das igrejas de Palladio: Il Redentore. Sem dúvidas que, embora San Giorgio Maggiore ofereça pontos altos da arte de arquitectar, Il Redentore consegue ser sem falhas. E penso que não estarei isolado nesta avaliação.
As obras começaram em 1557 e acabaram em 1592, 12 anos depois da morte de Palladio.
A figura 24.1 mostra um desenho retratando Veneza, no século XVII. A rosa assinala-se Il Redentore e a azul San Giorgio Maggiore.
Figura 24. 1 . Veneza séc. XVII
Na figura 24.2 estão representadas as plantas das duas igrejas de Palladio, à mesma escala. Il Redentore é mais curta, e a largura também é menor. Estão alinhadas pelo início da parte do presbitério, daí parecerem estar as duas desalinhadas. Também, tal como San Giorgio, Palladio dispões de um rectro-coro para Il Redentore.
Figura 24.2 . Plantas de San Giorgio Maggiore e Il Redentore
Il Redentore tem nave única (fig. 24.3), sem subterfúgios, e mais larga do que a de San Giorgio. As capelas cripto-colaterais, três em cada um dos lados, são bem menos profundas das de São Jorge e as passagens entre elas está à escala propícia à serventia.
Figura 24.3 . Il Redentore . Vista da nave em direcção ao altar-mor . Andrea Palladio
A planta do Redentor aponta também uma novidade em igrejas de nave alongada, isto é, de igrejas não-centralizadas, que é a cúpula apoiar-se sobre dois absidíolos que, em planta, são a concretização de um transepto ligeiro que não excede a dimensão das capelas cripto-colaterais; aliás, têm a mesma profundidade. A imagem 24.4 mostra bem o "poisar" do tambor da cúpula, numa cornija arquitravada de pedra cinzenta, talvez pietra serena, sobre quatro arcos de molduras reduzidas a uma expressão desornamentada. Os quatro arcos são dois da nave e dois sobre os absidíolos, ou sejam correspondentes ao transepto. Estes arcos repousam sobre a cornija mutulada do entablamento que contorna todo o interior da igreja.
Figura 24.4 . Il Redentore . Cúpula do cruzeiro e meias cúpulas do transepto . Andrea Palladio
A relação entre a nave e as capelas cripto-colaterais faz-se de um modo aberto, realçando-se os altares respectivos, de frente para a nave, conforme mostra a figura 24.5. É também de realçar a métrica que Palladio imprimiu aos alçados laterais interiores. A disposição é claramente a b a b a . Mas, como a imagem bem revela, as mísulas, que se anunciam como que as pedras de fecho dos arcos, dividem os tramos a em duas metades equivalentes aos tramos b. É um modo, melhor dito, uma maneira extremamente simples mas ao mesmo tempo inventiva de se inculcar tramos "iguais". Para além deste subterfúgio Palladiano, outro acontece, também na mesma fachada interior, e que é o facto de os tramos b, entre as colunas adossadas, se inscrever uma cornija arquitravada que percorre e marca todo o contorno interior, passando por trás das colunas embebidas. Assim, à face, esta composição parece querer sugerir serlianas. Volumetricamente, é um jogo notável de planos, abóbadas, edículas e nichos, num discurso sereno, de apreensão fácil, embora de uma elaboração magistral, a que somente poucos se atreveram.
Figura 24.5 . Il Redentore . Fachada do lado do Evangelho . Andrea Palladio
Ainda em relação à mesma parede, agora vista de escorço como apresenta a figura 24.6, vê-se claramente as passagens entre capelas e, também facto interessante, os espaços reservados às passagens atrás dos tramos b, são preenchidos por paredes com dois nichos sobrepostos. A grande luminosidade do espaço da igreja deve-se às aberturas parietais e às lunetas da cobertura, todas solucionadas por janelas termais. As colunas são coríntias, com um desenho notável de fluidez.
Figura 24.6 . Il Redentore . Parede do lado do Evangelho em direcção ao altar-mor . Andrea Palladio
O entablamento que percorre todo o interior da igreja (fig. 24.7) faz lembrar a opção de Brunelleschi, ao imprimir nervuras longitudinais na arquitrave, mútulas na cornija e nenhuma decoração no friso que, assim, fica branco, tal como em São Lourenço e Santo Spirito, ambas as igrejas em Florença. Curiosamente também a pedra aqui aplicada faz lembrar a pietra serena. As paredes delimitadoras do espaço, realçadas pelas meias-colunas perfazendo como que uma ordem monumental, bem como pelas pilastras, perfazem um continuum pouco comum em outros espaços religiosos: atente-se bem nas figuras 24.6 e 24.7, correspondente esta à parede de entrada no templo, oposta ao porticado que acolhe o altar-mor.
Figura 24.7 . Il Redentore . Parede da entrada no Templo . Andrea Palladio
O presbitério desta igreja é de um desenho notável, tal a grande inovação de o dotar de um "transepto" que não ultrapassa a largura da nave da igreja. Como remate visual da capela-mor, um porticado de planta curva, separando a nave da igreja do coro dos padres; um rectro-coro como também o de San Giorgio Maggiore. A figura 24.8 mostra bem a delicadeza desta separação, numa solução talvez mais diáfana do que a adoptada para San Giorgio Maggiore. E o facto de a separação entre Capela-mor e rectro-coro ser feita por um arco elevando-se acima do entablamento, mais uniforme torna todo este interior com uma clara distinção entre "terra e céu", em que a parede do altar-mor se rasga para a comunhão entre os "dois mundos", sem qualquer outro elemento sobrepondo-se à cornija, como acontece em San Giorgio Maggiore, com a aposição do órgão sobre a separação do rectro-coro.
Figura 24.8 . Il Redentore . Porticado da parede do altar-mor . Andrea Palladio

Figura 24.9 . Il Redentore . Porticado do lado do coro. Andrea Palladio
A figura 24. 9 mostra-nos a vista a partir do rectro-coro para a nave. Como se pode verificar, os monges tinham o seu recato e, por conseguinte, não tinham visibilidade para os fiéis.
Figura 24.10 . Il Redentore . Alçado principal, corte transversal e corte longitudinal. Andrea Palladio
A figura 24.10 mostra-nos a fachada da frente do templo, um corte transversal, evidenciando as relações entre a largura das naves, das capelas cripto-colaterais e ainda a volumetria da cúpula e dos torreões circulares, de prováveis influências islamitas, e um corte longitudinal.

A fachada principal (figura 24.11) parece ser a resultante do "ensaio" de San Francesco della Vigna. Assim, temos uma frente albergando a nave e as capelas, com o seu frontão que se interrompe por trás do frontão principal que coroa os três tramos centrais. Os tramos têm as dimensões a b c b a, mas o tramo c contém a porta principal que, por sua vez, é flanqueada por duas colunas e um frontão, tendo a porta a mesma dimensão a, dos tramos laterais. É um verdadeiro jogo de proporcionalidades.
A parede do fundo da nave, também rematada por uma empena triangular, aumenta este efeito de jogo entre triângulos "iguais" dois a dois.
Figura 24.11 . Il Redentore . Desenho do alçado principal e foto da fachada. Andrea Palladio
A estruturação vertical da fachada faz-se por duas pilastras sobrepostas, uma pilastra por trás de outra pilastra mas esta da ordem monumental, depois uma coluna (meia-coluna) também monumental e, enquadrando a porta de admissão, uma outra coluna (meia-coluna) da mesma altura das pilastras extremas.
É também curioso que Palladio se tenha apropriado de um significante árabe ou, talvez melhor dizendo, bizantino, ao dotar a zona do presbitério de duas torres sineiras cilíndricas (figura 24.12), de estreitos diâmetros. Mais lembra uma mesquita do que um templo cristão!
Figura 24.12 . Il Redentore . Coro, torres sineiras e cúpula. Andrea Palladio
Ainda uma nota final sobre a beleza da Linguagem ou, melhor dizendo, do código Palladiano, expressa na figura 24.13 mostrando o capitel compósito da ordem monumental e o capital coríntio da coluna que ladeia a porta. Os entablamentos também se expressam de forma simples, não perturbando a leitura da composição delicada desta fachada.
Figura 24.13 . Il Redentore . "código linguístico" de Andrea Palladio
A pequenina igreja para a Família Barbaro, em Maso, erigida junto à Villa Barbaro, tem aspectos extremamente interessantes, a começar pela concepção da sua planta que é uma figura geométrica com alguma complexidade como se pode ver na figura 24.14  É uma simbiose entre uma cruz grega com um dos braços um tanto mais longo do que os outros três, por admitir uma galilé em pronao tetrastilo no seu interior, e um círculo perfeito. Foram as figuras centralizadas mais procuradas na Renascença.
Figura 24.14 . Tempietto Barbaro . Planta . Andrea Palladio
Quanto à sua configuração volumétrica, a figura resultante é um pouco mais complexa, dado Palladio ter jogado com ligeiras alterações nos braços do "transepto". Também as duas torres sineiras, de configuração paralelepipédica, ajudam a tornar ainda mais complexa a geometria planar.
Figura 24.15 . Tempietto Barbaro . Alçado principal . Andrea Palladio

Figura 24.16 . Tempietto Barbaro . Interior . Andrea Palladio
O seu interior, circular (fig. 24.16), alterna meias-colunas com edículas que se rematam superiormente com frontões triangulares que servem de "descanso" a figuras reclinadas.

Figura 24.17 . Tempietto Barbaro . Pormenor do frontão . Andrea Palladio
Mais uma vez Palladio brinda a arte de arquitectar com uma novidade que consiste na ligação entre os capitéis coríntios através de guirlandas (fig.24.17) soltas, como se se tratasse de verdadeiras flores entrelaçadas. Este conjunto requintado ainda mais contrasta com a simplicidade do entablamento que apenas tem a cornija denticulada, bem assim como as cornijas das rampantes. No friso, liso, inscreve-se o nome do proprietário.

E, no próximo capítulo, falar-se-á, finalmente, no Teatro Olímpico que disputa o ómega da obra de Palladio com esta igreja Barbaro ou, melhor dito, Tempietto Barbaro.


a seguir: (12SET19)
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Palladio - TEATRO OLÍMPICO - Vincenzo Scamozzi

23 
15AGO19

As Igrejas de Palladio - I

A igreja de San Francesco della Vigna, dos Franciscanos, data de 1534/54, obra de Jacopo Sansovino. Possivelmente, a fachada pensada em termos artísticos seria deixada para mais tarde, seguindo mais ou menos a tradição italiana de se aprontar o interior dos templos, em ordem ao normal funcionamento da Eucaristia, deixando o embelezamento para depois. Estão, entre outros, o célebre caso da Catedral de Bolonha ou mesmo a igreja de São Lourenço, em Florença. Mas, depois do Concílio de Trento, as fachadas passam a ter um papel por demais importante, na medida em que funcionavam como mais um apelativo à oração e à visita das igrejas. Igrejas essas que se implantariam onde houvesse espaço, ou livre ou mesmo entre construções existentes, sem qualquer preocupação de se orientar a cabeceira para Nascente, como até aí. Palladio é chamado para dar uma nova face à Igreja, facto que se completa em 1564.
Figura 23.1a . Fachada de San Francesco della Vigna . 23.1b . Escorço do lado da Epístola da igreja
E Palladio desenha este alçado que vai constituir como que um embrião que vai "amadurecendo" até acabar na magistral fachada de Il Redentore que, tal como o tempietto Barbaro, não chegará a ver concluídas.
A figura 23.1a mostra o alçado em que a luz faz salientar os elementos constituintes de San Francesco. A figura 23.1b mostra o "volume" da fachadas do lado da Epístola, evidenciando a espessura da fachada que se apõe ao corpo primitivo da igreja.
Figura 23.2 . Fachada de San Francesco della Vigna . 1564 . Desenho de alçado . Andrea Palladio 
O desenho da fachada de San Francesco della Vigna é a solução encontrada por Palladio para resolver o frontispício de uma igreja de três naves, tal como Alberti teve que se confrontar com o mesmo problema aquando ter de desenhar uma nova fachada para Santa Maria Novella, em Florença, em 1470, cerca de um século antes. Não são três naves no sentido estrito do termo: é uma nave central, mais alta do que as partes laterais onde o espaço se divide em cinco capelas, um tanto à maneira da igreja de Santo André, em Mântua.
Assim, Palladio desenha uma base, qual crepidoma, "tentando" elevar a igreja o mais possível do chão secular "impuro" . A figura 23.1a mostra à evidência que a altura real da porta atinge o cimo desta base, sendo o resto da altura uma espécie de bandeira opaca. O alçado divide-se em cinco tramos, a a' b a' a. As partes laterais da igreja, correspondentes ao Evangelho e à Epístola são separadas por pilastras e colunas embebidas, ambas geminadas nos extremos, e por colunas embebidas junto à parte central. Esta zona que abrange a totalidade da largura da igreja é rematada por um frontão triangular que desaparece por trás dos tramos a' b a', ou seja, por trás da nave principal da igreja. Esta parte central, mais destacada, é divida por colunas embebidas que são sobrepujadas por um entablamento vigoroso, nos seus três elementos, sobre o qual assenta um frontão de cornijas denticuladas. Estas colunas embebidas descansam em bases que se salientam do crepidoma, dando ainda mais relevo ao ligeiro avanço da zona central.
Quer sobre os arranques dos dois frontões, quer no topo do frontão completo Palladio previu a colocação de estatuária mas que acabou por restar apenas os acrotérios. 
Ainda uma nota para o sentido de composição de Palladio. O tramo central, o b, é mais largo do que os outros dois as. No entanto, Palladio, ao ladear a porta por duas colunas embebidas, acaba por aproximar o vão b do vão a. E, mais uma nota sobre a composição Palladiana: Os tramos a' não contém colunas gémeas, somente as grandes colunas do "templo" central.

Outra grande intervenção de Palladio é a igreja do mosteiro de San Giorgio Maggiore, em Veneza.
Situado na ilha de San Giorgio Farina Sal, o conjunto monacal constitui uma presença importante e referencial como se fora um cenário da praceta de São Marcos (fig.23.3).
Figura 23.3 . Mosteiro de San Giorgio Maggiore visto da Piazzeta de S. Marcos . Veneza 
A data de 1566 para a construção da igreja parece reunir consenso entre as diversas atribuições. O Concílio de Trento acabara três anos antes. No entanto, algumas das suas directivas, mormente a de se adoptar nave única, que haveria de produzir as "box-churches" de capelas criptocolaterais, parece neste caso não ter tido grande eco. Com efeito, a planta da igreja (fig. 23.4) mais parece ser de três naves, como de uso antes do Concílio, tal a vastidão das capelas, face à largura da nave central. Ainda que estas capelas já possuam os respectivos altares encostados às paredes laterais, sem a obrigatoriedade de as orientar para Nascente, a passagem entre as capelas é de tal forma vasta que mais contribui para a noção de igreja de três naves e não de capelas criptocolaterais, efeito esse que, como veremos, está mais presente na igreja do Il Redentore.


Figura 23.4 . Planta da Igreja de San Giorgio Maggiore . Veneza . Andrea Palladio
A separação entre a nave e as capelas faz-se por pilares resultantes da junção de quatro pilastras, voltadas duas a duas para a capela-mor e para a entrada da igreja, mais uma outra meia coluna voltada para as capelas e mais uma meia coluna voltada para a nave. Este sistema fica mais complexo nos quatro pilares de sustentação da cúpula, conforme a figura 23.5 nos mostra. A ordem das pilastras é a coríntia e a ordem das meias-colunas é compósita. Esta discrepância entre as alturas das colunas e das pilastras anunciam uma ordem monumental. 
A coroar toda a estruturação vertical corre uma cornija arquitravada, de grande imponência, sobre a qual os tectos das capelas e da nave se lançam em abóbadas.
Figura 23.5 . Nave central da Igreja de San Giorgio Maggiore . 1566/1610 . Veneza . Andrea Palladio
O transepto é lançado para além dos limites das paredes laterais exteriores, constituindo-se quase como duas absides, terminadas planimetricamente em semi-círculo, como mostra a figura 23.6. 
Figura 23.6 . Abside do transepto da Igreja de San Giorgio Maggiore . 1566/1610 . Veneza . Andrea Palladio
O presbitério é algo complexo dado que depois das "absides" do transepto ainda se implantam duas zonas de planta quadrada, quais altares laterais (Fig. 23.6) ou, dizendo de outra forma, é uma cabeceira tripartida em que os altares laterais avançam em relação à Capela-mor e, por fim, a Capela-mor. O limite longitudinal do topo desta capela faz-se faz através de um porticado de vãos a b a, sobreposto também por uma cornija arquitravada que repercute os empuxes das colunas e pilastras. 

Figura 23.7 . Altar da Capela-mor da Igreja de San Giorgio Maggiore . 1566/1610 . Veneza . Andrea Palladio
Por sobre esta , ergue-se o órgão (fig.23.7). Quero também salientar o modo como Palladio densifica a dobragem das paredes laterais da Capela-mor com a frontal, através de uma colagem de meias-colunas e pilastras, solenizando o ponto fulcral do templo. A parede que delimita o corpo da igreja destinado aos fiéis constitui,assim, uma composição forte de estruturas mas também diáfana. Por detrás deste cenário arquitectónico notável, abriga-se o rectro-coro dos frades (fig.23.8). Acima do cadeiral abrem-se janelas que alternam com nichos preenchidos com santos. As janelas estão ligadas por um ático-dado com os pedestais salientes e as janelas estão ligadas por uma forte cornija arquitravada que sustem os frontões, alternando-se triangulares com circulares, que transfiguram as janelas quase como se fossem edículas.
Figura 23.8 . Rectro-coro da Igreja de San Giorgio Maggiore . 1566/1610 . Veneza . Andrea Palladio

Figura 23.9 . Rectro-coro da Igreja de San Giorgio Maggiore . Vista em direcção à porta da entrada no templo . 1566/1610 . Veneza . Andrea Palladio
Palladio utiliza a cor branca contrastando-a suavemente com um cinza claro, tornando a atmosfera da igreja com uma luminosidade que a luz de Veneza torna ainda mais peculiar. A igreja também se abre a esta luz através de janelas termais que se situam tanto na nave, como no presbitério, como, ainda, nos braços do transepto.
Figura 23.10 . Igreja de San Giorgio Maggiore . 1566/1610 . Vista desde a Capela-mor para o lado do Evangelho Veneza . Andrea Palladio
O interior desta igreja tem, além de outros grandes atributos, a particularidade de os elementos estruturantes se imporem (fig. 23.10). Tanto os verticais, como as colunas (meias colunas) e pilastras, como os horizontais que ressaltam através de cornijas arquitravadas em vez de entablamentos como seria de se "esperar". É também digno de nota o contraste destes elementos estruturantes com as molduras das janelas termais ou mesmo com o simplificado embelezamento, quase que inexistente, dos arcos, tanto nas faces como nos intradorsos.

Quanto ao exterior, o conjunto arquitectónico é de especial relevância na laguna, como já foi anteriormente apontado. O complexo do mosteiro domina a pequena ilha e o jogo dos volumes também aporta geometrias quase puras e um jogo de contrastes entre o vermelho do tijolo, o cinza da chapa metálica das coberturas e da cúpula e o branco da pedra calcária.
Figura 23.11 . Igreja e Mosteiro de San Giorgio Maggiore . 1566/1610 . Veneza . Andrea Palladio
Mas, depois de termos analisado a fachada de San Francesco della Vigna, detenhamo-nos um tanto sobre a de San Giorgio, tentando estabelecer uma comparação (fig. 23.12).

O plano maior abrcando as capelas laterais, é dividido também em cinco tramos a b a' b a. Mas, contrariamente à de San Francesco della Vigna, este plano anuncia-se com o seu próprio frontão com o entablamento horizontal completo e não somente os arranques como o de San Francesco. Há, nesta fachada uma força maior na presença deste "templo". a que falta, contudo, o remate da cúspide. 
Figura 23.12. Fachada da Igreja de San Giorgio Maggiore . 1566/1610 . Veneza . Andrea Palladio
Os tramos extremos são acusados por pilastras gémeas, e os outros tramos desta superfície são divididos também por pilastras, ainda que ligeiramente "escondidas" por detrás das quatro colunas do pano central. Salientando-se deste plano apõem-se quatro colunas embebidas a 3/4, que sustentam um frontão completo. Os dois entablamentos são iguais, tanto no estriado da arquitrave, como no friso desguarnecido, como ainda no denticulado das cornijas. O crepidoma de San Giorgio marca os ressaltos das edículas bem como das colunas, tornando este contacto do templo com o chão exterior mais bem conseguido do que em San Francesco della Vigna. A porta de entrada no templo marca outra proporção mais harmoniosa. E é de notar, ainda, que tal como em San Francesco, os tramos b também não  têm pilastras.

a seguir: (29AGO19)

24
As Igrejas de Palladio - II
22 
1AGO19
PALLADIO e os PALÁCIOS de VICENZA

Em 1552, concluía-se o Palácio Porto (Contrà Porti) do nobre Iseppo Porto. Com uma planta notável e indicadora da grande "pompa e circunstância" que Palladio soube imprimir à casa de tão ilustre personagem Vicentino. E, como tão ilustre personagem que era, fez-se representar, assim como a seu filho, Leonida, no ático-piso da sua casa (fig. 22.1).
Figura 22.1 . Iseppo e Leonida Porto . Ático do Palácio Porto (Contrà Porti)
A planta da casa (figura 22.2) apresenta um grande átrio de entrada (a zona mais larga) com quatro colunas isentas (como veremos também no palácio Barbarano del Porto), ladeado por compartimentos que se dispõem simetricamente. A este primeiro corpo da casa, em contacto com a rua, segue-se um cortile majestoso, de planta quadrada, quase que existindo para si mesmo, dado que as colunas, em número de 6 de cada lado, apenas servem como passagem coberta, não existindo compartimentos para além das paredes que o encerram.
O segundo corpo, mais pequeno do que o principal, também se abre para uma outra rua através de um átrio também com quatro colunas isentas.
Figura 22.2 .  Palácio Porto (Contrà Porti) . Planta do piso térreo . 1552 . Vicenza . Andrea Palladio
Como mais uma vez se constata, o alçado principal  vai basear-se na casa urbana que Bramante desenha para habitação de Rafael, em Roma. Já por diversas vezes se fez alusão a esta casa, o Palácio Caprini, neste blog. É extraordinário que a mesma semente possa ter dado tantos frutos, por mãos de diferentes arquitectos. Neste caso, à solução bramantina da correspondência do piso térreo a um crepidoma e à existência de um único estrato coincidente com o segundo piso, Palladio sobrepôs um ático-piso ao piano nobile.
Como total antítese a este desenho do alçado principal, Palladio despoja o alçado tardoz de quase todos os elementos que habitualmente acompanhavam os desenhos de fachadas, simplificando as molduras.
Figura 22.3 .  Palácio Porto (Contrà Porti) . Fachada principal e fachada tardoz . 1552 . Vicenza . Andrea Palladio
A figura 22.4 mostra-nos bem os diferentes espaços habitáveis, bem como algumas das suas relações volumétricas e habitacionais.
Figura 22.4 .  Palácio Porto (Contrà Porti) . Modelo de corte longitudinal . 1552 . Vicenza . Andrea Palladio
Este desenho do modelo tridimensional explicita bem aspectos da compartimentação deste tipo de palacetes, bem como as diferentes proporções entre os aposentos. De reparar também na composição do átrio principal que, como adiante veremos, se insere numa tipologia tão cara a Palladio. 
É de reparar, ainda, no autêntico luxo que o cortile proporciona, aos habitantes desta casa, nos três níveis de espaço aberto!

A Loggia del Capitaniato foi o que de mais notável se edificou do palácio que Palladio desenhou para albergar o representante de Veneza, em Vicenza. E digo restou porque apenas se fez uma pequena parte do edifício. É curioso que este palácio se edificou quase junto a uma das primeiras obras de Palladio, a célebre “Basílica de Palladio”, edifício com o qual acabará esta 22ª deambulação pela Arquitectura da Idade Moderna. 
Figura 22.5 . Loggia del Capitaniato . 1565 (proj.) . planta . Andrea Palladio 

A planta do Capitaniato, tal como restou do projecto inicial, não é mais do que uma loggia, aberta de três lados, estando o quarto lado integrado numa edificação justaposta (fig.22.5).

A fachada principal, apenas com três vãos em vez dos cinco (ou sete, dependendo dos autores que estudaram o projecto) é bem um mostruário do requinte Palladiano no seu código particular do manuseamento da linguagem do classicismo. Os vãos são separados por quatro colunas embebidas (figura 22.6), tal como se fossem pilastras, da ordem compósita e alcançando dois pisos. São de ordem monumental, dado que os vãos das portas da loggia são guarnecidos por pilastras adequadas à altura do pé-direito.
Figura 22.6 . Loggia del Capitaniato . 1565 (proj.) . Alçado - desenho e foto . Andrea Palladio

O segundo piso abre-se em portas de molduras simples, abrindo sobre varandas sustentadas por cachorros paralelepipédicos, e cujas padieiras irrompem a arquitrave, escalonada. O friso é simplificado e a cornija projecta-se fortemente com um mutulado bem forte. Sobre a cornija assenta uma balaustrada cuja planta reflecte os avanços e recuos dos ímpetos das colunas. O ático-piso abre-se em três janelas separadas por pilastras e remata-se superiormente por uma pequena cornija.

A figura 22.7 mostra um pormenor do canto formado pela fachada principal e pela fachada lateral. É bem visível a “fabrica” deste alçado.
Figura 22.7 . Loggia del Capitaniato. Pormenor da coluna/pilastra de canto
Figura 22.8 . Loggia del Capitaniato. Fachada lateral . Andrea Palladio

A fachada lateral (fig. 22.8) tem uma composição algo independente do alçado principal. Com efeito, o piso térreo é marcado por quatro colunas embebidas, suportando uma varanda cuja abertura para a sala se reveste de uma falsa serliana dado que os tramos rectos são cegos apenas dois nichos com as respectivas estátuas. Remata o alçado um entablamento vigoroso sobre o qual assenta um ático que, no centro, se abre numa balaustrada.


No entanto, o maior palácio que haveria de ser edificado por Palladio, em Vicenza, foi o Barbaran da Porto, construído entre 1575/79, ainda que o projecto deva ser dos últimos anos de 60. A sua planta é irregular devido ao facto de se ter anexado uma outra propriedade. A entrada, assim, ficou descentrada. A planta do palácio Barbarano da Porto é de uma extrema "imperfeição" (fig.22.9) , dada a irregularidade do cadastro da zona da cidade. No entanto, Palladio consegue dotar esta residência de elementos de uma extrema sofisticação e sempre inventivos.
Figura 22.9 . Palácio Barbarano del Porto . 1575/79 . Vicenza . Planta do piso térreo . Andrea Palladio
No entanto, apesar da irregularidade, o acesso é feito por um átrio de extraordinária elegância e engenho. Para fazer face ao peso da grande sala do piano nobile situado no "centro" do palácio, Palladio resolve a questão de sustentação através do emprego de 4 colunas jónicas, isentas, no meio do compartimento e colunas essas que perfazem 4 serlianas ou, melhor dito, "quase-serlianas" dado que as colunas que apoiam os extremos da arquitrave se embebem nas paredes frontais. Também as colunas das paredes dos extremos, tanto a da entrada da rua como a da entrada do cortile, se adossam às paredes exteriores. Sendo esta explicação algo confusa, nada melhor do que ver a figura fig. 22.10. Resta acrescentar que o tecto deste vestíbulo se apresenta como uma sucessão de abóbadas de arestas, coadjuvando para o efeito tridimensional do espaço nobre de entrada. 

Figura 22.10 . Palácio Barbarano del Porto . 1575/79 . Vicenza . Pormenor do átrio de entrada da rua
Andrea Palladio

Na História da Arquitectura do Classicismo (designação ampla que me parece abranger toda quanto utilizou os fundamentos gregos) poucos são, de facto, os arquitectos que souberam re-inventar e re-inventarem-se de um modo tão sublime, na medida em que Palladio tanto abre uma janela sem qualquer alusão a uma única moldura (Villa Godi, Refeitório de San Giorgo Maggiore) como vai a extremos "barrocos" conforme vimos na Vila Barbaro!


Para além da sofisticação que já apontei no átrio deste palácio, repare-se no extremo cuidado posto na composição do alçado principal (fig. 22.11). 

Figura 22.11 . Palácio Barbarano del Porto . 1575/79 . Vicenza . Desenho do Alçado principal . Andrea Palladio

Sem querer ser repetitivo em excesso, gostaria que fosse bem observada parte da fachada do tardoz do corpo principal, na zona de abertura que dá acesso ao cortile (fig.22.12)

Figura 22.12 . Palácio Barbarano del Porto . 1575/79 . Vicenza . Alçado tardoz do átrio principal . Andrea Palladio
Para além da colunata que segue a norma de sobreposição das duas ordens, a jónica no piso térreo e a coríntia no piso superior, Palladio abre 3 portas de saída do átrio para o cortile. Com uma singeleza deslumbrante, Palladio reduz a serliana a um mínimo elementar, onde apenas as diferenças das aberturas, e respectivos capitéis de supostas colunas ou pilares reduzidos ao mínimo, significam serliana. Que MANEIRA tão sui generis de se fazer arquitectura!

Chama-se impropriamente basílica ao edifício (fig.22.13), já existente, o Palazzo della Ragione, que tinha como finalidade a reunião dos 400 notáveis de Vicenza, centro cívico político e de negócios. Palladio foi o arquitecto escolhido a intervir para lhe dar uma nova “cara”, construindo-lhe uma envolvente em pedra branca, que consagraria de uma forma loquaz a SERLIANA.

Figura 22.13 . Basílica de Vicenza . Vicenza . 1546/97 . Andrea Palladio
E o desenho magnífico que a figura reproduz é bem demonstrativo da delicadeza do revestimento.

De facto, as paredes exteriores não são mais do que uma sucessão de serlianas, em ambos os pisos. A monotonia, que se poderia adivinhar do emprego de tanta justaposição, é desfeita pelo uso de serlianas com os tramos rectos mais estreitos em cada extremo de cada uma das três fachadas livres: a’ b' a’  a b a …. a b a  a´ b' a’ (fig. 22.13 e fig. 22.14 ).
A fachada sudeste tem oito tramos, a fachada sudoeste tem cinco e a fachada noroeste tem nove tramos: 

Figura 22.14 . Tramo terminal e corrente da Basílica de Vicenza . Vicenza . 1546/97 . Andrea Palladio
Figura 22.15 . Tramo terminal e corrente da Basílica de Vicenza . Vicenza . 1546/97 . Andrea Palladio
Este edifício notável encosta-se à Torre Bissara, do século XII. Este facto ainda mais faz admirar a mestria de Palladio, libertando o seu projecto de uma possível monotonia ao dar-lhe como que um ponto final ao seu discurso arquitectónico.

Mas, para além de este efeito estético ou, por trás deste efeito estético, ressalta a lógica estrutural da parede, na medida em que se reforçam os cunhais (fig. 22.14).

Figura 22.16 . Planta do piso térreo da Basílica de Vicenza . Vicenza . 1546/97 . Andrea Palladio

Outro efeito grandioso desta envoltura, é o facto de fazer "desaparecer" a tortuosidade da planta do edifício gótico preexistente, conforme se pode verificar na figura 22.16. 

A obra foi adjudicada em 1546 e só terminou, com o segundo piso, em 1597, dezassete anos após a morte de Palladio. A figura 22.17 mostra bem não só as janelas de arcos apontados, do medievo, bem como a dimensão da nave desse 2º piso.
Figura 22.17 . Nave do segundo piso da Basílica de Vicenza . Vicenza . 1546/97 . Andrea Palladio
Entre a fachada original e a nova fachada, o espaço citadino, sob logge, é também um dos momentos em que o passeante pode usufruir arquitecturalmente este extraordinário "up-grade" renascentista, conforme a figura 22.18 nos mostra à evidência.
Figura 22.18 . Loggia do segundo piso da Basílica de Vicenza . Vicenza . 1546/97 . Andrea Palladio

E para finalizar a visão sobre a arquitectura civil de Palladio se falará do seu Teatro Olímpico, também em Vicenza, obra de 1580 (ano da morte de Palladio) a 1585, mas acabada já por Vincenzo Scamozzi, arquitecto seu colaborador. Este edifício encerrará o capítulo sobre Palladio, depois de nos inteirarmos da arquitectura das igrejas de Palladio, constantes da próxima edição.

a seguir: (15AGO19)
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As Igrejas de Palladio