4 22NOV18 LEON BATTISTA ALBERTI

22NOV18
LEON BATTISTA ALBERTI
de Rimini a Mântua


Depois de Filippo Brunelleschi, passemos a ver a obra de Leon Battista Alberti (Génova 1404 / Roma - 1472).
Entre as primeiras obras de arquitectura de Alberti está a alteração que Segismondo Malatesta, Senhor de Rimini, quis fazer de uma igreja existente, a de São Francisco, gótica de seu traçado, transformando-a no mausoléu para si e demais familiares. Desde o início do século XIX, foi elevada à categoria de Catedral, com a devoção a Santa Colomba.

Figura 4.1 . Planta e alçado do lado da epístula do Templo Malatestiano . 1450 ( início) . Rimini
Leon Battista Alberti
Alberti, sem mexer no interior da igreja, resolve “revestir” o edifício existente apondo-lhe novas fachadas laterais (figura 4.1), enquanto que a fachada da frente é substituída por uma nova parede. As laterais "albertianas", resolvidas em arcos iguais espaçados por pilares de iguais dimensões,  não tiveram qualquer espécie de contemplação para com a localização das aberturas medievais existentes, tendo havido a preocupação única com uma nova métrica que Alberti resolveu por bem executar, conforme as figuras 4.1 e 4.2 bem demonstram.

Figura 4.2 . Perspectiva do lado interior do lado da epístola do Templo Malatestiano . Catedral de Santa Colomba Rimini . Leon Battista Alberti
Estas paredes laterais exteriores dão cumprimento ao costume etrusco de tumulação, consistindo em arcadas contínuas, no vão de cujos arcos se depositariam os túmulos.

A igreja, tal como hoje se apresenta, deixa ainda muitas dúvidas quanto ao projecto original de Alberti. 

Com base numa medalha (figura 4.3) imortalizando Malatesta e a fachada do templo, pensa-se que este edifício poderia ter sido projectado com a volumetria da transcrição bastante fidedigna da leitura da referida medalha.

Figura 4.3 . Medalha com efígie de Segismondo Malatesta e alçado principal do Templo Malatesta . Rimini 

Figura 4.4 . Provável solução para o Templo Malatestiano . 1450 (início) . Rimini . Leon Battista Alberti

Porém, tendo sido Alberti um dos mais acérrimos defensores da architettura all’antica, não deixa de causar uma certa estranheza que ele propusesse como remate do estrato superior e central do templo um arco repousando directamente sobre duas pilastras (figura 4.4), solução esta que se repetiria nos topos do transepto. Pilastras não são colunas, obviamente, como as quatro colunas coríntias, no primeiro estrato, e ainda que apenas semi-colunas, suportando um entablamento com os seus três componentes, como a fachada (figura 4.5) ainda revela.
Figura 4.5 . Fachada principal do Templo Malatestiano . 1450 (início) . Rimini . Leon Battista Alberti
 O templo Malatestiano, ou, hoje, a Catedral de Rimini, estará entre as obras primeiras de Alberti, enquanto arquitecto, mas infelizmente não concluída. Além desta incógnita que nos deixou, este edifício ficou deveras bastante danificado aquando da Grande Guerra.
Ainda que não se possa dar por garantida, como absoluta, a fachada principal, tal como ela hoje se mostra, não haverá dúvidas quanto a certa estranheza da composição.

Em 1460 começava a construção da Igreja de São Sebastião, em Mântua, obra encomendada pelo Duque Ludovico Gonzaga. Trata-se de um templo, dos primeiros a obedecerem a uma planta centralizada, em forma de cruz grega (figura 4.6).
Figura 4.6 . Planta de São Sebastião – corte longitudinal, fachada principal, piso térreo e andar . 1460 (in.) Mântua
Leon Battista Alberti 
Esta cruz grega faz uma simbiose com um quadrado, dilatando assim o espaço central e provocando a particularidade de proporcionar braços extremamente curtos e rematados por exedras, exceptuando o braço que contém a entrada, este admitindo um pronao antecedendo o que se poderá tomar como uma galilé.
Da história deste templo são mais as incertezas do que as certezas, como confirma o site oficial dos Bens Culturais da Lombardia - LombardiaBeniCulturali.
Figura 4.7 . Piso térreo de São Sebastião . Mântua . Leon Battista Alberti 
A leitura do edifício como uma simples igreja não parece ser a mais imediata. Já o Cardeal Francesco Gonzaga, filho do Duque Ludovico, interpelava o pai: 
"non intendeva se l'haveva a reussire in chiesa, o moschea o synagoga" 
(Calzona - Volpi Ghirardini, 1994). 
Portanto, esta formulação de planta centralizada levantava as hipóteses de ser igreja, mesquita ou sinagoga…
Todo o templo se encontra elevado do solo formando um primeiro andar, sobre um outro piso, este térreo, embora de pé-direito muito mais baixo. Este piso térreo, que não tem ligação interna com o superior, não pode assim ser considerado como cripta (figura 4.7). Mas, dada a sua relevância no conjunto arquitectónico, pode levar a crer-se que teria sido destinado a mausoléu da Família Gonzaga. Hoje, e tendo-se considerado a hipótese de ter sido destinado a panteão, não andará muito longe essa pretensão pois que é actualmente o panteão mantovano dos Caídos pela Pátria.
Figura 4.8 . Segundo piso da Igreja de São Sebastião . 1460 (início) . Mântua . Leon Battista Alberti
A igreja, de carácter monumental, resolve-se geometricamente de uma maneira extremamente simples e, ao mesmo tempo, com uma tal conjugação de formas que dificilmente se poderá achar paralelo. Com efeito, a exaltação do centro é realizada principalmente (figura 4.8) pela abóbada de cruzaria de aresta, que cobre o espaço central de planta quadrada. Esta abóbada assenta sobre arcos estriados que descarregam nos vértices interiores em mísulas que parecem ser constituídas por um fragmento de entablamento assentando sobre um outro entablamento, este somente com friso e cornija. As paredes que suportam a abóbada abrem-se em arcos paralelos ao da sustentação da abóbada, e que se prolongam brevemente constituindo os braços da igreja que ficam reduzidos quase que a meros apêndices. As paredes limite dos lados do transepto e da capela-mor fecham as abóbadas e nelas se inserem portas falsas rematadas em semicírculo sobre as quais se inserem óculos.
Figura 4.9 . Fachada de São Sebastião . 1460 (início) . Mântua . Leon Battista Alberti 
A fachada de São Sebastião continuará a ser um “quebra-cabeças” no que respeita à verdadeira solução primitiva, nomeadamente na questão do acesso ao templo, a uma cota alta. É do início ou meados dos anos 20, do século passado, que datam as duas escadas laterais de acesso aos dois arcos (figura 4.9) do pronao. Provavelmente Alberti previu a entrada na igreja através do acesso, por escadas, cobertas pela loggia do lado do Evangelho e, provavelmente, as cinco aberturas do pronao seriam meros pórticos com guardas.

Esta fachada, tal como se apresenta no respeitante à sua cimafronte, suscita grandes perplexidades. É certo que, para Alberti, uma parede poderia ser sustentada por colunas “embebidas”.
E, aqui em São Sebastião, Alberti não as utiliza. Utiliza duas pilastras, uma em cada um dos extremos da fachada, e outras duas com metade da altura, enquadrando uma falsa edícula. A fachada é de piso único, embora que, pela leitura da disposição das aberturas, se possa deduzir poder ela corresponder à altura de três pisos.
O mais intrigante, no entanto, é a interrupção do entablamento, de expressão fortíssima, onde o friso quase corresponde ao dobro quer da arquitrave, quer da cornija. Este hiato resulta numa janela, sobre a que se apoia um arco cego de cornija fortemente pronunciada.
O que poderia esta disrupção tectónica querer significar? Alberti, o grande teorizador, um dos arquitectos all’antica, tendo concebido a sua De re aedificatoria, como é possível aventurar-se a um sinónimo de ruptura estruturante de um pórtico? O frontão fica em desequilíbrio de forças, com as rampantes descarregando apenas sobre os dois troços de entablamento separados por um vazio, levando a que o tímpano, de conformação triangular habitual, se desenhe como uma seta ou flecha, dado que irrompe pela imafronte.
Que Giulio Romano se tenha aventurado a insinuar ameaças de ruínas no Palazzo del Té (conforme teremos ocasião de ver), compreende-se vindo de um Maneirista. Mas que Alberti tenha desenhado uma tal fachada será sempre uma interrogação que a simples lógica do meu entendimento sobre o purismo renascentista levantará.
Figura 4.10 . Fachada sudoeste de São Sebastião . 1460 (início) . Mântua
Leon Battista Alberti 
A fachada sudoeste do templo (figura 4.10) revela, sem qualquer espécie de subterfúgios, a interpenetração entre a cruz grega e o quadrado, isto é, as figuras planas que estão na base da espacialidade interior.

Para a mesma cidade de Mântua, em 1470, Alberti projecta a Basílica de Santo André (figura 4.10), encomendada pelo mesmo Duque Ludovico Gonzaga, para nela se venerar o Sangue de Cristo. 
Nunca concluída, iniciada no ano da morte de Alberti, e ainda com edificações justapostas à parede do lado da Epístola (figura 4.12), é um dos espaços mais notáveis, estranhos e não expectáveis pela grande incógnita que levanta na medida em que o espaço centralizado, como uma das normativas renascentistas, não foi o plano escolhido.
Figura 4.11 . Basílica de Santo André . Planta . 1472 (início) . Mântua. Leon Battista Alberti
Com efeito, a igreja, de grandes dimensões, em cruz latina e de nave única e com grandes capelas laterais, ainda que não-comunicantes (figura 4.11), parece ser muito mais conforme com a lógica que a espacialidade das igrejas pós-tridentinas haveriam de apresentar, não fosse a não comunicação das capelas. E não é demais lembrar que a Basílica começou em 1472, setenta e cinco anos antes do início do Concílio de Trento.
Figura 4.12 . Basílica de Santo André . 1472 (início) . Mântua
Leon Battista Alberti
A nave da basílica (figura 4.13) é grandiosa e houve uma quase obsessão de não se deixar qualquer porção de espaço sem decoração, seja em relevo, em baixo-relevo ou em pintura, embora de datação posterior. As capelas laterais são resolvidas com cobertura em abóbada perfeita e cuja flecha dos arcos é sobreposta por um entablamento, nos seus três componentes. Este entablamento acompanha todo o perímetro do templo, sem interrupções, perfazendo inclusivamente a exedra da capela-mor.
Figura 4.13 . Nave da Basílica de Santo André . 1472 (início) . Mântua . Leon Battista Alberti
Os tramos das capelas alternam com tramos rectos que se dividem em três zonas: junto ao chão, abrem-se em pórticos de não grande altura; nas zonas do meio inserem-se imensos quadros a óleo, com criaturas celestes; nas zonas mais altas rasgam-se óculos cujo diâmetro é tangente às pilastras que separam os tramos da nave e também ao entablamento já referido. Os pórticos contidos nos tramos rectos, atrás referidos, dão acesso a pequenas capelas, de cobertura em cúpula, supostamente para capelas funerárias.
Os tectos, abobadados, criando a zona celestial, devidamente separados das paredes, são resolvidos em caixotões quadrados, não se distinguindo os referentes à nave, ao transepto, às capelas laterais e à capela-mor. O intradorso dos arcos que separam as naves dos lados do transepto e o arco triunfal também são resolvidos por caixotões que, embora de molduras quadrangulares, são de desenho mais elaborado do que os anteriormente descritos.
A exedra desta basílica tem uma resolução bastante original. É dividida em três tramos iguais que repetem os tramos das capelas da nave, sem os tramos mais pequenos, de lintel, e rasgam-se em janelas com parapeitos relativamente baixos e padieiras muito altas. Sobre cada janela, abrem-se óculos, tornando esta capela-mor bastante iluminada.
Ainda que nada acrescente em termos de mais conhecimento, a imagem 4.14 dá-nos uma perspectiva, muito pouco usual, rasando o intradorso de uma abóbada de berço, formada por caixotões quadrados, assente sobre um entablamento fortemente decorado, separando a zona celeste da zona terrena.
Figura 4.14 . Tecto da nave da Igreja de Santo André (vista direccionada para a entrada do templo) . Mântua . Leon Battista Alberti 
O alçado principal (figura 4.15), que nunca se acabou, também tem um desenho bastante original. Os arcos de triunfo de Roma terão sido a grande inspiração de Alberti.
Porém, o humanista e arquitecto que tanto se debruçou sobre a coluna e a legitimidade do seu emprego, parece não ter ousado aqui o seu uso. Em vez disso utilizou pilastras quase sem espessura que se orlam de motivos vegetalistas. 
Figura 4.15 . Fachada de Santo André . Mântua . Leon Battista Alberti e Luca Facelli 
Ainda que tenha sido Luca Facelli a executar a fachada, pois Alberti morreria quatro anos depois do início da construção do templo, parto do princípio de que Facelli não teria adulterado o desenho do Mestre, até mesmo pelas particularidades que o desenho apresenta. São dignas de registo as folhagens que compõem os capitéis, adjectivados de itálicos, principalmente os que rematam as pilastras extremas da fachada.
A solução de três tramos - a b a - em que se resolve a fachada, corresponda à proporção de: 1 2 1. É de referir que esta mesma proporção é a que Alberti utilizou no interior do templo, na marcação das capelas de volta perfeita, que têm como largura o dobro das capelas porticadas.
Esta fachada, no entanto, tem sido comparada a arcos triunfais romanos. De todos os que vi nas pesquisas a que procedi, me parece que o que poderá ter estado na origem (se é que Alberti teria necessitado de um arco determinado), como modelo, tenha sido o Arco dei Gavi, em Verona (figura 4.16), datando do século I d.C. e não o arco de Trajano de Ancona, conforme muitas vezes tem sido referido.
Figura 4.16 . Arco dei Gavi . séc. I d.C. Verona 
a seguir (6DEZ18):
5
SANTA MARIA NOVELLA
I PALAZZI

8NOV18
A FLORENÇA de FILIPPO BRUNELLESCHI
architettura alla moderna versus all'antica
A SERLIANA

Em Florença e em 1419 foi encomendado o Hospital dos Inocentes. A fachada principal, que fecha o lado sudeste da Praça da Santíssima Anunciada (figura 3.1), é resolvida em nove arcos de volta inteira (tendo posteriormente sido acrescentados mais dois arcos, um de cada lado), suportados por colunas coríntias, de capitéis finamente elaborados (figura 3.2) bem assim como os ábacos quadrilobados com rosetas.

Figura 3.1 . Hospital dos Inocentes . 1419 . Florença . Filippo Brunelleschi
Sobre os extradorsos dos arcos assenta um lintel que se divide em três partes, lembrando um entablamento em que a arquitrave se constitui em duas molduras sobrepostas de superfícies distintas. O friso é uma mera faixa rebocada, a cornija é muito reduzida em altura e sobre ela assentam as janelas, constituindo-se, assim, como que um parapeito corrido. A cada um dos arcos, e a eixo, sobrepõe-se uma janela rematada por frontão triangular. 
Figura 3.2 . Capitel da colunata frontal do Hospital dos Inocentes . Florença
Nos esquadros, entre cada um dos arcos, aloja-se um medalhão circular, de contorno salientando-se em três níveis, emoldurando a figura de uma criança, enfeixada (figura 3.3) como costumava o uso de então, fazendo jus ao fim a que era devotada a instituição.
Figura 3.3 . Medalhão de menino enfaixado .Hospital dos Inocentes . Florença . Irmãos Della Robia
Falando-se de arcos descarregando directamente sobre colunas entra-se na diatribe entre os seguidores da arquitectura ANTIGA e os da arquitectura MODERNA.
Leia-se que por arquitectura antiga se entendia o espólio da arquitectura que a civilização romana tinha deixado pela Península Itálica e seus domínios, enquanto que por arquitectura moderna se entendia a arte dos godos - os bárbaros - a arquitectura a que se chama gótica.
Esta arquitectura difundiu-se mais no centro europeu, com principal destaque para França e, mais concretamente, para os arredores de Paris, quando o Abade Suger resolveu reconstruir a Abadia de Saint-Denis, em 1137, assim nascendo o novo estilo – o GÓTICO.

A questão de se pretender um reflexo límpido de sintonia construtiva, isto é, de se pretender “escutar a voz” dos materiais e transcrever essa consonância, que os antigos nos legaram, prende-se com o facto das fachadas porticadas, de herança grega, serem constituídas por colunas suportando um entablamento ou um simples lintel ou verga ou padieira, sempre com um perfil recto. Por este motivo, a pedra constitutiva do lintel não poderia exceder um vão grande e daí a proximidade das colunas, variando os espaços entre estas, ou sejam os intercolúnios, apenas entre 1 1/2 de diâmetro (PICNOSTILO) a 4 diâmetros (AREÓSTILO). 
NOTA:
SISTILO – 2 diâmetros, EUSTILO – 2 ¼ diâmetros e DIASTILO – 3 diâmetros
.
Este elemento recto estabelecia a divisão entre a parte habitada e a cobertura, normalmente a duas águas, em que a empena daí resultante se formalizava em triângulo. E é esta figura geométrica, que tapa o vão desaproveitado do telhado, que se vai transformar numa das peças mais requintadas da composição arquitectónica nobilitando a fachada principal dos templos- o FRONTÃO.
E dificilmente se encontrará uma forma mais prodigiosa de se "invocar" um triângulo do que estas imagens (figura 3.4) que um dia realçaram metade do frontão do Partenon.
Figura 3.4 . Fragmento do Partenon
Ao invés da extensão algo limitada  do lintel, o arco, seja ele de volta perfeita, seja ele apontado, ou seja abatido foi a invenção que permitiu grandes espaçamentos entre os pontos de apoio verticais, quer de colunas, quer de pilares ou quer ainda de paredes. 
E sendo o Renascimento o renascer da arquitectura clássica, onde não havia qualquer arco interveniente neste processo construtivo, não deveriam as colunas constituírem-se  como apoios dos arcos. 
Na figura 3.5 justapôs-se a fachada do pórtico da Villa Rotonda, de Palladio, com a fachada de arcaria do Hospital dos Inocentes, demonstrando-se as duas concepções: dos antigos e dos modernos, se forem lidas as fachadas da esquerda para a direita, correspondendo, no entanto, a cronologia na direcção oposta.
Figura 3.5 . Villa Rotonda vs. Hospital dos Inocentes
Prosseguindo na observação da obra arquitectónica de Brunelleschi, olhemos para a planta da igreja de São Lourenço (figura 3.6), em Florença, supostamente, a de fundação mais antiga da cidade. Depois de no capítulo anterior termos visto a Sacristia Velha, do lado do Evangelho (a laranja na figura), olhemos agora para o corpo da igreja.
Figura 3.6 . Igreja de São Lourenço com a Sacristia Velha (lado Evangelho), Sacristia Nova (lado da Epístola) e a Capela dos Príncipes (cabeceira). Planta . Florença
Vejamos como Brunelleschi  interpreta o problema entre antigos e modernos, como oferece um dos espaços mais bem conseguidos de arquitectura.
Pelas premissas arrojadas patentes nesse espaço, pela modularidade, pelo emprego das matérias fundamentais para a leitura contrastante dos interiores – a pietra serena contrapondo-se ao reboco pintado de branco -  num jogo de rigor geométrico pouco habitual, parece que este espaço religioso foi uma espécie de “ensaio” do espaço fabuloso que Bruneleschi haveria de construir uns anos depois: a igreja de Santo Spirito, também em Florença e já referida no capítulo 2 (25OUT18)
Mas, entretanto, depois de 1441, os trabalhos foram entregues a Michelozzo, arquitecto que se encarregaria do seu prosseguimento, dado que Brunelleschi, então já ancião, se dedicava a outras obras. 
Eis o interior de São Lourenço (figura 3.7), astuciosamente ligando as duas concepções. Penso que nunca será demais enaltecer a capacidade de Brunelleschi ter lidado de forma tão exemplar com a questão das duas opções: alla moderna, na colunata da nave central; all'antica, no porticado impresso nas paredes das naves laterais. É também de salientar que as pilastras, que visualmente simulam ou estruturam as paredes laterais exteriores, são sobrepostas e encimadas por um entablamento em tudo semelhante ao que Brunelleschi usa na fachada do Hospital dos Inocentes.
Figura 3.7. Igreja de São Lourenço . Interior - nave central e naves laterais 
Também nesta mesma matriz se desenvolve o entablamento que se sobrepõe à arcada da colunata na nave central. 
Mas, como facto deveras extraordinário e digno de registo, Brunelleschi parece determinado a aceitar os antigos. Somente por distracção se pode deixar de reparar bem na entrega dos arcos sobre as colunas. De facto, acima dos ábacos repousam peças que, na sua composição, não são mais do que fragmentos de um pretenso entablamento (emoldurado a amarelo na figura 3.7), correndo ao longo da nave central, e bem constituído nos seus três clássicos componentes: arquitrave, friso e cornija. É como se de um imaginado entablamento corrido restassem apenas fragmentos iguais, sobrepondo-se cada um deles a cada um dos ábacos das colunas. De notar, ainda, que tanto as colunas como as pilastras são da mesma ordem, a coríntia (ainda que divergindo em pormenores), contribuindo-se ainda mais para uma homogeneidade visual. É também digno de registo o facto de a cobertura das naves laterais ser resolvido em cúpulas integrando as próprias perxinas, sem solução de continuidade, e a cobertura da nave central ser plana, correspondendo a uma cobertura de madeira como também soía ser a cobertura tradicional das basílicas. 
Curiosamente, a sua fachada (figura 3.8), apesar de concursos em épocas diversas para a sua conclusão, com concorrentes que incluíram Miguel Ângelo, Rafael e Giuliano da Sangallo, entre outros, nunca se chegou a realizar por problemas técnicos e por falta de verbas. 

Figura 3.8 . Igreja de São Lourenço . Fachada poente

Finalmente, chega-se àquela que se considera ser uma obra-prima do espaço arquitectural: a igreja de Santo Spirito, mais tarde elevada a Basílica Menor, que se iniciou em 1444 e veio a ser consagrada em 1487, quarenta e três anos depois, sem, no entanto, lhe ter sido dada a fachada correspondente à época quinhentista, vindo a ser fechada já na época barroca (figura 3.9) com uma frente modesta onde somente o recorte da cimafronte em empena lhe confere o setecentismo.


Antonio Manetti, Giovanni da Gaiole e Salvi d'Andrea foram os arquitectos que se seguiram na conclusão da obra. 
Figura 3.9 . Basílica Menor de Santo Spirito . Fachada do séc. XVII . 1444/87 . Florença 
A imagem do exterior da igreja, tal como se encontra, com o perímetro feito de planos absolutamente lisos, incluindo a fachada principal, difere substancialmente da proposta inicial. 
Figura 3.10. Planta da Basílica Menor de Santo Spirito . 1444/87 . Florença . Filippo Brunellschi 
A planta original da igreja (figura 3.10) tem várias leituras possíveis. Primeira, e que acabou por não corresponder à realização material, é o seu contorno ser proposto em semicilindros, cada um correspondendo à unidade geradora de toda a planta da igreja. Segunda, é a célula espacial que compõe todo o interior, marcando cada tramo em que se dividem as naves laterais que, além de acompanharem a nave central, acompanham todo o desenho da cruz latina que compõe a nave central, o transepto e a capela-mor, como se fosse oferecido um deambulatório contínuo em torno do corpo interior da igreja. Cada célula é composta por quatro apoios verticais  sobre os quais se apoia uma cúpula esférica com as perxinas incorporadas. 
Figura 3.11 . Basílica Menor de Santo Spirito . planta . 1444/87 . Florença . Filippo Brunelleschi
Os espaços correspondentes à capela-mor, ao cruzeiro e a cada um dos braços do transepto, além de iguais, correspondem a quatro das unidades espaciais, dispostas em quadrado. O corpo da nave central corresponde a quatro vezes cada um dos espaços agora referidos, ms dispostos em linha recta. 
No cruzeiro implanta-se um baldaquino (figura 3.11) que contribui para que a percepção espacial seja a de uma igreja de cruz grega, ou de planta centralizada, como tentarei explicar. 
Com efeito, através da planta da igreja (figura 3.10), podemos, mais uma vez, verificar que a capela-mor bem como cada um dos braços do transepto são iguais. Nos topos destas unidades espaciais, de planta quadrada, insere-se uma coluna sobre a qual descarregam dois arcos. Essa coluna fica "estranhamente" no centro do campo de visão. Ora este “entrave” de um elemento sólido em vez de um vão, como seria norma, faz com que na cadência a que o percurso de entrada nos impõe, não nos demos conta de que houve qualquer interrupção e, assim, parecer estarmos numa planta centralizada, tal como na Sacristia Velha, em que não se pode alcançar fisicamente o centro. Na Sacristia Velha pela localização do túmulo, aqui pela existência do baldaquino. 
Figura 3.12 . Igreja de Santo Spirito . Nave lateral . 1444/87 . Florença . Filippo Brunelleschi
Ainda que o sistema estrutural siga a mesma lógica da Igreja de São Lourenço, com os “fragmentos” de um entablamento sobrepostos às colunas coríntias, nas paredes onde se abrem os nichos laterais, em vez de pilastras, como em São Lourenço, Santo Spirito apresenta meias colunas adossadas às paredes divisórias dos nichos (figura 3.12). Estes arcos, que são formeiros dos nichos laterais, conjuntamente com os dois torais das naves laterais e o formeiro da nave principal perfazem o módulo espacial que corre todo o perímetro do espaço da igreja. Contrariamente ao tecto da nave da igreja, que é plano, os módulos referidos, que também constituem as naves laterais, são cobertos por cúpulas, de planta quadrada, e as capelas são coroadas por semicúpulas. 

Ainda que hoje se saiba que durante muitos anos a autoria da Capela dei Pazzi (figura 3.13) estivesse atribuída a Brunelleschi, supondo-se, afinal, não ser, não quero deixar aqui de referir um dos alçados mais inusitados de toda a História da Arquitectura Moderna. E é precisamente a fachada principal do templo, fachada essa que é resolvida através de uma galilé ou pórtico, se assim se lhe quisermos chamar. Mas prefiro usar o termo serliana, ainda que apresente uma duplicação dos lumes porticados, dos lumes a, algo insólito como também insólito é o ático, de forte expressão, ser invadido pelo arco - o lume b - e o remate superior ser ser um "entablamento-guarda" da varanda aberta. 
Figura 3.13. Capela dei Pazzi . Florença
Como se define e porquê o nome de SERLIANA, se também a referência a esta abertura seja denominada JANELA de PALLADIO ou simplesmente MOTIVO PALLADIANO? 

Com efeito, é uma das invenções mais espantosas e grandiosas da Arte de Arquitectar. 
Ao pretender-se um rasgamento de grande largura em construção parietal de pedra, é consabido que a pedra é um material resistente à compressão, não admitindo vãos de grandes dimensões, para o que é necessário um material que trabalhe à tracção. Portanto, o arquitecto que inventou a possibilidade de vencer um vão grande de construção pétrea, sem o tornar "contra-natura", dividiu-o em três tramos. Mas, ao fazer esta divisão, inculcou-lhe um ritmo de espaços, ou lumes, a b a, sendo a mais estreito que b e, além disso, teve a genialidade de distinguir o processo de limitação superior ou, mais explicitamente, o processo de fecho das padieiras. Assim, os vãos mais estreitos são fechados por verga recta, formando um pórtico, e o vão central e mais largo, é colmatado por arco. Deste modo, o vão é composto por três lumes separados por dois elementos verticais, pilares ou colunas. É curioso verificar-se que a serliana se torna mais elegante se os tramos a forem substancialmente menores que o tramo central b. Pelo menos é o que, depois de observados inúmeros casos, me parece como mais consubstanciada esta descoberta arquitectónica. 
Figura 3.14 . Serliana da Villa Adriana . sec. II . Tivoli Figura 38 . Serliana do portal do Tribunal Constitucional séc. XVIII . Lisboa

Talvez que consiga consensos ao mostrar duas serlianas (figura 3.14), distanciadas no tempo, por séculos, a romana (da esquerda)  que, pelo meu parecer, estará nos limites do razoável com os tramos a quase igualando-se ao tramo b, e a de Lisboa (da direita), no extremo oposto de dimensão dos tramos a reduzidos quase ao ilógico, isto é, ao inexistente, somente aludidos pelo espaçamento que os capitéis, mais largos que os fustes, provocam no encontro com as paredes laterais. 
Figura 3.15 . Villa Medici . 1630 ca. Diego Velasquez
Mesmo que a diferença entre os vãos porticados e o vão arqueado seja mais próxima, penso que o limite poderá estar no “Jardim da Villa Medici”, em Roma, pintado por Diego Velasquez, que a figura 3.15 ilustra. 

Ainda que tenha sido Sebastiano Serlio o grande teórico e arquitecto renascentista a consagrar, no seu tratado, este tipo de abertura, e daí a designação de SERLIANA, foi através da obra de Palladio, concretamente da Basílica de Vicenza, que se divulgou a serliana como MOTIVO DE PALLADIO. Uma das características mais esmeradas das serlianas é o facto de os entablamentos sobre os vãos porticados geralmente constarem unicamente de arquitrave e cornija, prescindindo-se do friso, assim adelgaçando todo o perfil da moldura do vão tripartido. Também algo de semelhante oferece o arco, conforme a própria Basílica de Vicenza (figura 3.16) nos evidencia. 
Figura 3.16 . Serliana da Basílica de Vicenza . séc. XVI . Andrea Palladio (representado em estátua)
Ainda uma última nota sobre a serliana e não menos importante: 
SERLIANA agrega, num mesmo vão, a consagração de uma espécie de simbiose entre a arquitettura alla moderna versus arquitectura all'antica.
a seguir (22NOV18):
4
LEON BATTISTA ALBERTI
de Rimini a Mântua

Veracidade - versus – Verosimilhança: a Arquitectura da Idade Moderna oscila entre estes dois axiomas, os dois Vs pois que se, para comunicar, se serviu eminentemente dos elementos estruturantes das ordens clássicas, nem sempre estes tiveram genuína utilidade. Por vezes, incontestáveis, outras vezes em completa equidade e, possivelmente na maioria dos casos, juntando a verdade e a mentira. E esta somente consegue iludir através da verosimilhança. Sem este jogo, de profundo conhecimento da construção e da sua tradução entre estrutura maciça e estrutura esquelética, a arquitectura clássica não teria atingido a aura que conquistou, traduzindo o fausto de vários impérios, ao longo de séculos.

Apenas com base no teor da Unidade Curricular de História de Arquitectura Moderna, do Curso de Arquitectura da Universidade do Porto, FAUP, [realizado nos anos lectivos de 2006/7 (e em paralelo também na FCTUC-DARQ, da Universidade de Coimbra), 2009/10 e 2010/11], apresentarei o meu ponto de vista sobre a arquitectura desta época, tão rica e expressiva, que medeia entre o alvorecer do Renascimento e os inícios do Neoclassicismo, em que os elementos estruturantes têm um papel relevante na transmissão da linguagem arquitectónica. Enquanto fui professor, quer de Projecto, quer de Teoria (s), quer de História (s) da Arquitectura, ou ainda quer do Programa de Doutoramento em Arquitectura - PDA - sempre incentivei os meus estudantes a inteirarem-se da estruturação dos objectos arquitectónicos e tentarem percepcionar as linguagens possíveis dos materiais que os consubstanciam. Sem saber como se faz, como se pode materializar o projecto arquitectural, não há realização arquitectónica - não há ARQUITECTURA. 

Agora, livre de qualquer responsabilidade didáctica, divagarei sobre uma matéria que sempre me fascinou, enquadrando-a numa sequência cronológica, ainda que possa haver momentos em que se retroceda ou se anteceda uma ou outra época, se for importante para a clarificação do discurso e desde que se me afigure como o processo mais lógico para a apropriação das “diversas” arquitecturas. Focar-me-ei apenas e quase exclusivamente nos objectos arquitectónicos que mais me tocaram, por razões por vezes díspares; arquitecturas que vi e outras que nunca verei, mas das quais tive notícia.

Porém, é importante que se registe que esta abordagem nunca poderá confundir-se com a HISTÓRIA. Para isso teria de haver isenção e equidistância. Não houve, nem haverá essa intenção. Será apenas um divagar sobre alguns dos edifícios que fizeram História.
O meu olhar sobre os artefactos arquitectónicos prende-se essencialmente com uma apetência de ver esses objectos especificando aspectos que se atribuem às características da matéria e suas diversas e possíveis expressões, enfatizando o que se chama: LINGUAGEM ARQUITECTÓNICA.
É consabido que as fachadas não têm a exclusividade de transmitirem esta linguagem, pois que linguagem de arquitectura é a transmissão do TODO do objecto, é o que o criador quer expressar enquanto espaço que se concretiza através da estruturação física. A maior ou menor mestria com que se lida com a geometria - que informa e enforma a espacialidade - está irredutivelmente ligada à transmissão da ideia de vivência dessa espacialidade. E é através das figuras geométricas e das características físicas dos materiais que o ESPAÇO criado transmite a MENSAGEM do significado que a sensibilidade apreende através do significante materializado.
“Cum in omnibus enim rebus, tum maxime etiam in architectura haec duo insunt,
quod significatur et quod significat”

M. Vitruvii Pollions
Os temas focados estarão preferencialmente submetidos aos nomes dos arquitectos, por vezes com os respectivos cognomes como autores, por vezes a títulos sintetizadores de sensibilidades ou de classificações usualmente aceites, podendo alguns desses títulos serem da minha inteira responsabilidade e, portanto, serem assumidos como tal.
Poder-se-á invocar que divago transversalmente pela arquitectura de Itália. Não é inteiramente verdade, embora tenha sido em Itália (melhor dito, nos seus diversos stati) que se difundiu a arquitectura clássica helénica: primeiro na Magna Grécia, e depois em Roma. As ruínas da Cidade Eterna foram a inspiração e a base sobre as quais o Renascimento relançou o classicismo. Como tal, prosseguindo na senda da arquitectura italiana, uma paixão impossível de esconder, e fazendo jus às suas origens, penso que poderei ser absolvido.
Por fim, apresentarei as arquitecturas que integraram as épocas fundamentalmente focadas em Itália de países como Espanha, França, Inglaterra e Alemanha, ainda que, por vezes, alguns exemplos destes países sejam mostrados antes, no decorrer do discurso. Ocasionalmente, porém, poderei aludir a alguns, poucos, exemplos de Portugal. 

As publicações serão quinzenais, podendo haver interrupções imprevistas.

NOTA: Ortografia anterior ao A.O.90
a seguir:
1
Do final do GÓTICO até SANTA MARIA DAS FLORES (Florença)

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11OUT18
Do final do GÓTICO até SANTA MARIA DA FLOR (FLORENÇA)


A conquista de Constantinopla, pelos Turcos, em 1453, parece ser consensualmente o acontecimento que assinala o fim da Idade Média, remetendo para o meio do século XV o início da Idade Moderna. Em arquitectura e além de Itália, o gótico atingia o cume da sua expressividade e, particularmente, a Europa das Catedrais alcançava o seu fulgor máximo.

O mesmo é dizer-se que a arquitectura gótica também atingia o esplendor da sua perfeição.

Figura 1.1 . Catedral de São Pedro . 1225/1573 . Beauvais 
A concepção estruturante da pedra alcançava uma das mais sublimes materializações e a Catedral de Beauvais (figura 1.1) é um exemplo paradigmático desta concertação entre desejo arquitectural e realização arquitectónica. A exegese da conquista do céu quis igualar-se à altura do edifício, tornando-o no mais alto templo gótico.
Figura 1.2 . Estrutura da abside da Catedral de São Pedro 


Depois de ter caído por duas vezes devido à esbelteza desejada e não correspondida pelas leis da materialidade, do edifício apenas subsiste a abside e o cruzeiro com as fachadas norte e sul, cruzeiro esse a que foi aposta a fachada ocidental, dada a desistência da construção da nave.

É de se destacar a proeza da construção pétrea, material consabidamente resistente à com-pressão, mas que parece, pela delicadeza relativa de algumas das suas peças, nomeadamente dos arcos botantes, estar submetido à tracção. A prudência levou a que, no entanto, toda a delicadeza da construção pétrea dos arcos botantes e dos respectivos pilares fosse devidamente coadjuvada com estiradores de ferro (figura 1.2)



Foi dos momentos altos em que a forma e a estrutura se unificaram a ponto de se tornar quase impossível detectar onde acaba a arquitectura e começa a estrutura e vice-versa. 

A simbiose é perfeita e daí a completa identidade de um código persuasivo, nem sempre atingido em outras épocas cujos códigos, por vezes, não fazem coincidir estrutura e morfologia arquitectónica. 
Figura 1.3 . La SainteChapelle . 1246 . Paris 


O interior da Sainte Chapelle (figura 1.3), a capela palatina dos Reis de França, em Paris, obra de 1246, mostra o esplendor da estruturação do seu espaço arquitectónico, onde os arcos torais, os pilares e os arcos ogivais, conquista dos finais do período românico, se harmonizam pratica-mente com as mesmas secções.

Exemplificam também essa simbiose arquitectura/estrutura, por excelência, as grandes catedrais góticas onde os elementos estruturantes tais como os contrafortes, os arcos-botantes e os pináculos, além de elaboradamente esculpidos tinham a sua razão de ser sob o ponto de vista da estrutura esquelética a que aspiravam. 
O sistema construtivo mostra-se sem subterfúgios, desafiando a força da gravidade, elevando a cobertura sobre finos elementos estruturais esbeltíssimos. Estes suportes verticais apresentam-se como um feixe de nervuras, causando uma expressividade de fragilidade ao individualizar cada elemento vertical. 

Entre estes componentes encontra-se um dos elementos mais frágeis da arquitectura – o VITRAL. O efeito da descoberta da luz, transfigurando o interior, é notável, consubstanciando a vontade expressa de trazer o Céu para a Terra.
Figura 1.4 . Rosácea do transepto Sul da Catedral de Nossa Senhora de Paris 
No referente à estrutura do período gótico, e mormente nos edifícios de prestígio, como as catedrais, o apuramento da ogiva foi a grande conquista que o final do românico prodigalizou ao criar células espaciais, células essas assentes em quatro pilares, com os arcos ogivais cruzando-se e estruturando-as. Estas células espaciais justapunham-se linear e sucessivamente a outras, até atingirem o comprimento desejado para as naves.
Na Catedral de Nossa Senhora de Paris, o rendilhado da rosácea bem como o da parede onde ela se insere parecem artifícios sem qualquer peso, quase se comparando aos motivos escultóricos das rosetas trilobadas e hexalobadas que se apõem às paredes que enquadram este magnífico conjunto da janela da ala sul da Catedral (figura 1.4). Em termos de linguagem arquitectónica poder-se-á argumentar que estamos em presença de uma poesia, a sublimação da literatura, em que a matéria pesante e a matéria feita luz se contemplam em igualdade de circunstâncias, dando-nos a ilusão de uma quase imaterialidade digna do destino além-vida para que a Catedral foi criada.
A tecnologia da pedra tornou-se um dos pontos mais altos desta época que mediou as quedas dos dois Impérios de Roma.


E, falando-se de linguagem, quanta segurança de erudição não será necessária para se dar um “pontapé na gramática” ao prescindir-se de uma coluna, exactamente na confluência da justa-posição de dois arcos, intersectando-se em ângulo recto, patente no segundo piso da galeria do Palau de la Generalitat (figura 1.5), em Barcelona?
Figura 1.5 . Galeria do Palau de La Generalitat . séc. XV . Barcelona 
Este cunhal, notável na sua concretização de subversão de um sistema estrutural, revela um saber e um assenhoreamento da tecnologia da pedra que só a prática consumada pode arriscar.

É um dos casos em que o arquitecto se mostra capaz de dominar o material de construção assumindo uma subversão da linguagem que, no caso presente, rompe com a regra do apoio na descarga vertical da parede superior.

O que buscava a igreja gótica? Todas as acções humanas eram com Deus e dirigidas para Deus. Pelo menos enquanto termos de filosofia de vida e pós-vida.
Figura 1.6 . Capela de San Blas . Catedral de Toledo . séc. XIV


As igrejas expressavam esse desiderato de junção com os ideais cristãos, na busca da ascese, sem interrupção entre a vida terrena e a vida celestial. Esta concepção encontra-se tão bem expressa, sem descontinuidades, na verticalidade contínua entre feixes verticais e curvos da calote da Capela de San Blas (figura 1.6) – Catedral de Toledo, de 1397, onde até se poderá antever o azul do céu, enquanto que a cúpula de Santa Maria da Flor, em Florença (figura 1.7), se apresenta nitidamente autónoma da estruturação vertical que significa a vida terrena, claramente separada dos elementos constituindo a significação da vida eterna. Esta separação, entre o que é efémero e o que é eterno, terá a sua tradução para linguagem da arquitectura através de uma separação efectiva entre estruturas parietais e estruturas das coberturas, revelada pela resolução formal de umas e de outras.
Figura 1.7 . Catedral de Florença . 1436 (consagrada) 
Figura 1.8 . Cúpula da Catedral de Florença . Giorgio Vasari . Federico Zuccari, pintores 



NOTA : Peço mil desculpas. A figura 1.8 não é a cúpula da Catedral mas sim a do Baptistério de São João, de Florença, do século XIII. Pintaram-na artistas como Cimabue, Coppo di Marcovaldo e Meliore.



Figura 1.8A . Cúpula da Catedral de Florença . Giorgio Vasari . Federico Zuccari, pintores
Com efeito, na Catedral de Florença, nas naves laterais bem como na nave central, as estruturas verticais das paredes prolongam-se para o tecto, em arcos torais e ogivais, mesmo apesar dos capitéis e outras molduras horizontais perturbarem esses empuxes.

E, assim, separada da vida terrena, a cúpula mostra todo o esplendor celestial, capturado pela mestria de dois dos grandes artistas da Renascença: Giorgio Vasari e, depois da sua morte, em 1574, Federico Zuccari (figura 1.8A).

A Catedral de Florença (figura 1.9), ainda hoje a 5ª maior da Europa, depois de São Pedro de Roma, Catedral de Sevilha e de São Paulo de Londres, com o Campanile, a fachada ocidental, a nave, o coro e a cúpula representam, penso que sem grandes margens para dúvidas, o edifício que engloba a Idade Média e a introdução na Idade Moderna, numa síntese feita Arquitectura.
Figura 1.9 . Catedral de Florença . 1436 (consagrada) 

E, de facto, há que se concordar plenamente com a constatação presente no site http://visitare-firenze.it/duomo-di-firenze/:
“Il Duomo e la sua cupola rappresentano la bellezza intramontabile dell’ingegno e dell’arte.”

a seguir (25OUT18):

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Os Fundamentos: o SISTEMA TRILÍTICO - o PÓRTICO

O coroamento de SANTA MARIA DA FLOR (Florença)