17 
23MAI19

GIACOMO BAROZZI da VIGNOLA
 - Arquitecto e Tratadista -

GIORGIO VASARI
"Le Vite de' piu eccelenti ..."

Giacomo Barozzi da Vignola, outro dos grandes mestres do Maneirismo, deixou duas obras-primas: a Villa Farnese, em Caprarola, e a igreja de Jesus – Il Gesù, em Roma. A fachada desta seria edificada, anos depois, por Giacomo della Porta. Sob o prisma da teoria de arquitectura deixou, certamente, o tratado de Arquitectura Clássica mais difundido de sempre.

Mas, começando por uma obra talvez menos conhecida de Vignola, 1553 vê dar-se início à pequena igreja dedicada a Santo André, na Via Flamínia, em Roma. Com escassos dez metros de largura, é um espaço religioso de planta centralizada, muito embora se inscreva num rectângulo a que se justapõe um outro bem mais pequeno, assim se consubstanciando a capela-mor (figura 13.1).
E como facto notável, esta igreja é a primeira a conter uma cúpula oval, figura geométrica prenunciadora do espírito barroco.
Figura 13.1 . Igreja de Sant’Andrea a Via Flaminia . Planta e Alçado . 1553 . Roma . Giacomo Vignola
Figura 13.2 . Igreja de Sant'Andrea a Via Flaminia . Interior . 1553 . Roma . Giacomo Vignola
Os alçados interiores apresentam-se com uma configuração pouco habitual, dado que eles próprios terminam em arco, perfeito, os da largura, e em arco abatido, os do comprimento. Encimando estes quatro arcos, alojam-se as perxinas, ou pendentes, que suportam a cúpula oval (figura 13.2).
Esta cúpula é sustida por um entablamento, nos seus três componentes, que vai distanciar-se dos apoios que os atrás referidos arcos poderiam oferecer. É muito curiosa, e pouco usual, esta maneira de separar o entablamento da cúpula de qualquer apoio estruturante. As paredes são divididas em três tramos, reproduzindo janelas termais. Nos lados mais pequenos têm três lumes, e, nos lados maiores têm cinco lumes.
De modestas dimensões, esta igreja com o alçado exterior principal bastante depurado (figura 13.3), parece poder inserir-se entre os primeiros renascentistas, tal a aparente tranquilidade com que os elementos estruturantes se mostram. Com efeito, as pilastras, quase sem relevo, dividem o alçado num ritmo a b a.
As partes inferiores dos capitéis estão ligadas por um estreitíssimo friso, e sobre as pilastras assenta um entablamento simplificado. Por sobre este corpo do edifício rematado por um frontão triangular insere-se um corpo paralelepipédico que, por sua vez, suporta um corpo em cilindro ovalado, correspondente à cúpula. 
Figura 13.3 . Alçado de Sant'Andrea a Via Flaminia. 1553 . Roma . Giacomo Vignola 
Mas o mais extraordinário deste objecto arquitectónico é a grande semelhança da composição volumétrica com o Panteão, como melhor ilustram as figura 13.4 e 13.4a. 
Figura 13.4 . Fachada de Sant'Andrea a Via Flaminia. 1553 . Roma . Giacomo Vignola
Figura 13.4a . Panteão . Roma
A Villa Farnese, em Caprarola, implanta-se sobre uma fortificação na zona do Lácio, a 50 Km a noroeste de Roma. Essa fortificação, ou rocca, em italiano (figuras 13.5 e 13.6), e daí a sua disposição em pentágono e com baluartes, foi concebida por Antonio da Sangallo, o jovem, e por Baldassare Peruzzi.
Figura 13.5 . Palazzo Farnese . 1559 .Planta e vista aérea . Caprarola . Giacomo Vignola .Baldassare Peruzzi 

É, de facto, notável a implantação desta fortaleza - palácio, na aresta de uma colina, como também há alguns outros exemplares em Itália.
Figura 13.6 . Implantação de Caprarola 
Talvez que como alçado mais emblemático se possa considerar o do seu pátio interior, em redondo (figuras 13.6 e 13.7)
Mais uma vez se pode invocar o Palazzo Caprini, com o primeiro piso de estereotomia bem vincada, alternando aberturas em arco intercaladas por duas ordens de nichos rectangulares encimados por nichos em arcaria. Separam-se os dois pisos com uma cornija arquitravada, de pouca altura. Sobre esta abre-se um segundo piso praticamente constituído por grandes aberturas em arcaria, que se intercalam por janelões rectangulares estreitos encimados por nichos ovais cegos, dando réplica às diferenças de aberturas do piso de baixo, criando uma harmonia visual, uma harmonia sintáctica. 
Figura 13.7 . Palazzo Farnese . 1559 . Caprarola . Pátio central . Giacomo Vignola .Baldassare Peruzzi
Os vãos em arco são demarcados por colunas jónicas, quase isentas, encimadas por um entablamento de forte expressão, antítese do inferior, e com a cornija encimada por balaustrada que se salienta em troços correspondentes ao par de colunas. Na direcção destas situam-se acrotérios direitos que são encimados por vasos pétreos. O efeito é de uma delicadeza extrema, um “rendilhado” que é transmitido por peças arquitectónicas fortes e apesar do partido estético das grandes aberturas que todo o alçado apresenta, fica o contraste entre a força do dórico – a virilidade - e a elegância do jónico – a feminilidade. 
Figura 13.8. Palazzo Farnese . 1559 . Caprarola . Alçado principal . Giacomo Vignola . Baldassare Peruzzi 
O alçado, dito principal, é uma combinação entre fortaleza e edifício civil. Ao cimo da escadaria bipartida com dois lances de cada lado (figura 13.8), erguem-se dois torreões abaluartados, de paredes cegas e com os cunhais realizados em pedras alternadamente mais curtas e mais compridas. O centro, uma parede lisa, resolve-se em três janelas de cada lado da porta de acesso, em arco e inserida num maciço pétreo. O segundo piso tem 1 janela mais 1 janela, 5 arcos e mais 1 mais 1 janelas. O terceiro piso tem 1 janela e 1 mezanino, mais 7 janelas com os respectivos mezaninos e mais 1 janela com o respectivo mezanino. Os dois pisos superiores enquadram-se entre dois pavilhões muito menos salientes do que os do piso térreo que são dois baluartes. Os cunhais são sempre marcados por pedras alternando as suas dimensões.
Não deixa de ser curioso que a parte central do alçado se desenvolva com oito suportes verticais, tantos quantas as colunas dóricas do Partenon. Coincidência ou emulação?
Quanto ao interior, além das notáveis salas e divisões que compõem esta residência papal, é de se salientar a escada principal e monumental da casa (figura 13.9).
Figura 13.9 . Escada monumental . Caprarola
Mas Vignola ficaria para sempre como o arquitecto que mais se aproximou das directivas do Concílio de Trento ao realizar o projecto da Igreja de Jesus, em Roma. Igreja feita para a Congregação dos Jesuítas, de novo e tendencialmente adoptando a cruz latina (figura 13.10), assim refutando a cruz grega ou a planta centralizada, símbolo de paganismo. Todavia há uma atenuante para que esse efeito fosse diminuído. Assim, o transepto excede em escassos centímetros as laterais do corpo da igreja. A capela-mor tem praticamente a mesma dimensão dos transeptos, no respeitante à abertura para a nave, terminando em abside curva. 
Ao penetrar-se na igreja e depois de percorridos os três primeiros tramos, deparamo-nos com uma igreja de planta centralizada, tal a força do cruzeiro que uma imensa cúpula e respectivo lanternim congregam.
Figura 13.10 . Igreja de Jesus (Planta e corte perspectivado) . 1568/80 . Roma . Giacomo Vignola 
O irreverente da História é que, desejando Santo Inácio de Loyola atingir a ascese através do rigor fora de toda e qualquer sumptuosidade, a Igreja de Jesus tenha ficado como um dos espaços mais luxuosos da Cristandade. Além dos seus materiais construtivos em que o mármore é a pedra de construção, a Igreja acabou por ser completamente revestida, interiormente, por frescos sumptuosos que aliam pequenos elementos escultóricos, sob a forma de anjos, que se “diluem” em duas dimensões (figura 13.11). É um fresco monumental, a todos os títulos, e foi feito por Giovanni Battista Gaulli e desvendado em 1679, já em plena época barroca. É uma das representações mais bem conseguidas da ascese religiosa, um repto à ilusão dos sentidos.
Figura 13.11 . Tecto da Igreja de Jesus . 1679 . Roma . Giovanni Battista Gaulli 
Outro aspecto interessante desta igreja prende-se com o facto de não ter sido Vignola a projectar a sua fachada principal, tendo cabido a Giacomo della Porta esse feito que, a devido tempo, analisaremos. Foi um dos alçados que mais se repercutiu em inúmeras igrejas.
De Vignola, ainda cabe falar-se, quiçá, do seu maior feito: o Tratado “Regras das Cinco Ordens de Arquitectura”, de que a figura 13.12 reproduz a capa, na sua tradução castelhana.  Foi primeiramente editado em Roma, em 1562.
Figura 13.12 . Capa do Tratado "Regras das Cinco Ordens de Arquitectura" . Tradução Espanhola
O tratado de VIGNOLA, juntamente com os tratados de SERLIO e de PALLADIO, levaram a que a arquitectura italiana começasse a ser difundida pela Europa.

Também é curioso constatar-se que a arquitectura clássica foi o primeiro código arquitectural a ser difundido pelo mundo inteiro, constituindo-se como um código Universal, partindo da Europa e difundindo-se pelos outros Continentes, haja em vista as possessões coloniais europeias.

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GIORGIO VASARI 
"Le Vite de' piu eccelenti ..."

Pintor, arquitecto e escritor, Vasari (1511/74) ficaria famoso pela sua obra "Vite de' piu eccelenti architetti, pittori e scultori italiani...", editado em 1550 e mais tarde reimpresso, em 1580. Este tratado teve uma influência extraordinária na difusão do gosto arquitectónico. 
A grande consideração que Miguel Ângelo tinha pelo seu trabalho foi também um factor da sua difusão.
Figura 13.13 . Frontespício das "Vidas dos mais excelentes arquitectos, pintores, e escultores..."
A sua obra de arquitectura mais conhecida é, sem dúvida, a Galeria dos Ofícios ou sejam as Logge Vasariane, em Florença. Foi pensada para aí se instalarem os escritórios - "Ufizzi", para uso dos Magistrados, em número de treze. 
Mais tarde se construiria, no último piso, um corredor arquitectónico (fig. 13.14) de ligação entre a Praça da Senhoria, na margem direita do Rio Arno, e o Palácio Pitti, na margem esquerda do rio, começada em 1560 e terminada em 1584, já por Bernardo Buontalenti. 

Figura 13.14 . Corredor VASARIANO . Florença . 1560/84 . Giorgio Vasari . Bernardo Buontalenti
Esta ligação em corredor, protegendo os Medici de intempéries ou de possíveis encontros "não desejados", tem cerca de um quilómetro de extensão. 



A arquitectura da Galeria dos Ufizzi é um espaço muito sui generis, e é de uma beleza fora de série (fig. 13.15), começando por estas duas características: 

1) a "praça-rua" que liga a Praça da Senhoria à margem direita do Rio Arno, e
2) o porticado - "loggiato architravato" 

O porticado que Vasari desenvolveu, foi talvez o primeiro desta natureza em espaço público. Normalmente os pisos térreos abertos eram resolvidos por arcadas, como por exemplo Brunelleschi havia feito no Hospital dos Inocentes, a escassa distância destas galerias.

Figura 13.15 . "Galleria degli Uffizi" . Perspectiva sobre a margem do Arno . Florença . 1560/84. Giogio Vasari
A figura 13.15 destaca a perspectiva dirigida sobre a margem esquerda do Arno, numa proposta de visão diafragmada, tão cara ao Maneirismo, como a visão diafragamada sobre Mântua que Giulio Romano propunha no Palazzo del Te. O alçado que "encerra" essa perspectiva é realizado por uma dupla serliana, de planos paralelos, destacando-se o forte entablamento que percorre os três lados da "praça-rua". O piso que se lhe sobrepõe também se abre em serliana, mais reduzida pois que está inserida apenas no tramo correspondente à abertura em arco. Este arco repete-se nos tramos laterais, enquadrados pelas lesenas duplas. Também com o ritmo a b a remata superiormente este alçado interior um andar rasgado em janelas quadriculadas iguais às dos outros dois alçados.

A face "exterior" deste alçado (figura 13.6) mais curto das Galerias insere-se como mais uma edificação, na margem do Arno, ainda que constituindo um edifício que se destaca das construções adjacentes, onde uma serliana se impõe.
Figura 13.16 . "Galleria degli Uffizi" . Vista da margem direita do Arno . Florença . 1560/84. Giogio Vasari
Os dois lados iguais e longos, que conformam este espaço rectangular das galerias, são constituídos por alçados iguais e, portanto, simétricos, em relação ao eixo da rua. São de uma elaboração extremamente sofisticada (figura 13.17), porque extremamente simples, ainda que também de extrema delicadeza nos seus componentes.
Figura 13.17 . "Galleria degli Uffizi" . Alçado dos lados maiores . Florença . 1560/84. Giorgio Vasari 
Cada alçado divide-se em dez tramos compostos dividindo-se cada um, por sua vez, em três tramos. A separar estes dez tramos insere-se um pilar que constitui um "falso" tramo, cego.  Cada tramo composto por três tramos é dividido por lesenas, simplificando-se, deste modo, a complexidade e o "barulho" que resultaria se os tramos se separassem por pilastras, de qualquer das cinco ordens. A profusão de capitéis e bases seria um tanto perturbadora num espaço tão estreito, num espaço que, na realidade, é uma rua.
Analisando, agora, cada tramo maior, a tripartição do piso térreo é feita com o recurso ao dórico - "... più sicuro e più fermo dagl'altri" -  entre os pilares cuja largura é dada por um nicho que se destinava a albergar uma estátua. Consagrar-se-ia, assim, a memória dos mais notáveis florentinos. No entanto, a concretização deste desiderato, através da estatuária, só se viria a efectivar na primeira metade do século XIX.

Sobre todo o piso térreo assenta um ático-dado, aparentando um ático-piso, na medida em que se alojam três janelas, uma cega no meio de duas abertas. Estas aberturas destinam-se a proporcionar a entrada de luz nas logge, numa solução assaz insólita e engenhosa, conforme se poderá observar na figura 13.18. É dos espaços urbanos mais bem conseguidos pela maturidade de conhecimento da Arte de Arquitectura em que a serenidade se alia ao saber interpretar cânones e reinventar-se sem alardes. É também esta característica de serenidade uma das vertentes do Maneirismo. 
Figura 13.18 . "Galleria degli Uffizi" . Interior da loggia . Florença . 1560/84. Giorgio Vasari
O ático que encima o piso térreo é dividido em tramos por mísulas de pouco relevo onde parece receberem o peso das lesenas que dividem os tramos. As janelas, de molduras simplificadas, alternam os seus frontões sendo o curvo entre os triangulares.
O piso superior tem cada um dos vãos preenchidos por uma rectícula de doze elementos abertos que se apoiam numa guarda cega, também dividida pelas lesenas.

a seguir (6JUN19):
18
ANDREA PALLADIO
O ARQUITECTO INTEMPORAL

16 
9MAI19
MICHELANGELO (conclusão)
e
JACOPO SANSOVINO - Dois Palácios Venezianos e a simetria implícita

Figura 16.1 . Porta Pia (face interna) . 1561/65 . Roma . Miguel Ângelo

Para melhor entendermos o código linguístico de Miguel Ângelo, a Porta Pia (figura 16.1), em Roma, encomendada por Pio IV, da família Medici, de Milão, poderá ser a melhor demonstração de como a imaginação mais delirante pode dar lugar a um objecto arquitectónico assaz invulgar! Com efeito, o edifício constitui-se como uma parede de tijolo, a que se apõe uma torre de travertino, perfazendo-se em três tramos. A zona de tijolo, base da referida torre e constituindo-se em um tramo de cada lado, contém uma janela “ajoelhada” e um falso postigo superior, em cartela. Um simples friso, resolvido em faixa, divide este piso térreo de um ático-dado, também de tijolo, onde se insere um óculo cego. Este ático é rematado também por uma faixa, sobre a qual pousam três acrotérios trapezoidais, de faces curvas, sobre os quais pousam pares de volutas encimadas por uma pequena bola. As janelas têm um desenho requintado, com padieiras altas contornadas lateralmente por mísulas paralelepipédicas que sustentam os arranques laterais de um frontão triangular que prescinde de parte do seu entablamento. No tímpano do frontão insere-se uma concha. As cartelas rectangulares, de perfil com quebras, são rematadas por rampantes sinusoidais que abraçam um pequeníssimo frontão curvo, dividido a meio. Os óculos cegos, assim como o óculo da parte central são envoltos numa moldura estranhíssima, sem precedentes em qualquer das declinações clássicas. Dizem as más-línguas que Miguel Ângelo quis “lembrar” a Pio IV que a família a que ele pertencia, os Medici de Milão, era de origem modesta e com o ofício de barbeiros, daí a espécie de “toalha” que envolve o óculo.

A parte central mereceria um compêndio para a explicar em pormenor, tal a profusão de sintaxes ar-revezadas. No entanto, aqui somente deixo o apontamento sobre o frontão que encima a porta de saída da cidade: é um frontão triangular que contém no seu tímpano um outro frontão, este curvo e interrompido, com a parte superior das rampantes terminando em volutas que, por sua vez, seguram uma guirlanda sobre a qual se ergue uma placa relatando o facto da construção da porta e o nome do seu comitente.
Entre 1534/38, Miguel Ângelo, a pedido de Paulo III, projecta a Praça do Capitólio - Piazza del Campidoglio -(figura 16.2), que houvera sido um centro importante de Roma, tendo caído no olvido. É um sítio privilegiado da cidade, na colina Capitolina, e o Palazzo Senatorio, o edifício central, era o antigo Tabularium. Também renova a fachada do Palazzo dei Conservatori e erige um novo, o Palazzo Nuovo. A praça, com uma planta trapezoidal, fazendo os palácios iguais um ângulo de 80º com o palácio primitivo, o Senatorio, fecha-se em direcção à Basílica de São Pedro, ao longe, dinamizando a perspectiva longínqua.
Figura 16.2 . Piazza del Campidoglio . Planta e vista aérea . Roma

As fachadas dos dois edifícios iguais que fecham dois lados da praça são da autoria de Miguel Ângelo. A ele se atribui a “licença” de ter usado duas seriações de ordens. Assim, num alçado de dois estratos e dois pisos, insofismavelmente marcados, lançam-se oito pilastras coríntias, sobre pedestais elevados (figura 16.3). São pilastras sobrepostas a lesenas, unificando o alçado num quase único piso. No entanto, o piso térreo, resolvido em logge, apresenta colunas, à escala desse mesmo piso, suportando um entablamento entrecortado em cada um dos sete tramos em que se divide a fachada. Por sobre cada uma destas logge insere-se um pano de parede com janelas de sacada, com colunas conformando os seus umbrais. Coroam-nas frontões curvos, albergando conchas e de entablamento interrompido. A janela do meio, mais larga e mais decorada, é coroada com um frontão triangular, também de entablamento interrompido. A fachada é rematada por um impressionante entablamento que, por sua vez, é rematado por uma balaustrada dividida em sete tramos por meio de acrotérios paralelepipédicos, sobre os quais se colocam estátuas.
Entre estes acrotérios intercalam-se dois mais pequenos, dando a cada tramo da balaustrada uma leitura de concordância com a largura dos vãos das janelas.

Esta fachada é de uma beleza sublime. Quando parece que nada mais há a inventar-se, há uma nova distribuição lexical, com duas escalas diferentes e em simultâneo – as colunas têm metade da altura das pilastras – o que, em conjugação simultânea, criam uma nova sintaxe, criam a ORDEM MONUMENTAL.
Figura 16.3 . Palazzo Nuovo . Campidoglio . Roma . Miguel Ângelo

O chão desta praça é abaulada no seu centro, com uma curvatura convexa, tradução significativa da CAPUT MUNDI. A estátua equestre de Marco Aurélio marca o centro que é reforçado pelo desenho do chão bem como pela sua própria convexidade, superfície esferóide que a figura 16.4 transmite, um tanto, visualmente. 
É, de facto, uma sensação extraordinária sentir sob os pés a curvatura do Mundo…
Figura 16.4 . Campidoglio . Estátua de Marco Aurélio . Roma

E, ainda que não seja de arquitectura que se trate, de seguida, não poderia faltar a grande obra-prima que constitui o tecto da Capela Sistina (figura 16.5).
Figura 16.5 . Tecto da capela Sistina . 1508/12 . Roma . Miguel Ângelo

Para além do que as figuras representam, de histórias infindáveis, parece-me que a "arquitectura do tecto" (figura 16.5) da Capela Sistina também poderia contar algumas "estórias" curiosas, nomeadamente como, por exemplo, se compõem mísulas e pedestais, conforme nos mostra a figura 16.6. É um pormenor em que essas estruturas são  tratadas de uma forma, no mínimo, delirante!
Figura 16.6 .  A Sibila Delfica entre "mísulas e pedestais" caprichosos . Miguel Ângelo

E, se ao iniciar a falar de Miguel Ângelo, comecei com uma escultura sua, termino com outra figura de Cristo, agora ressuscitado (figura 16.7), particularmente interessante pela ousadia com que Miguel Ângelo se atrevia na corte papal, ou não fosse ele o Divino!
Figura 16.7 . Cristo Ressuscitado . Mosteiro de San Vicenzo Martire . Bassano . Miguel Ângelo 1515
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JACOPO SANSOVINO

Dois Palácios Venezianos e a simetria implícita


Figura 16.8 . Palácio Caprini (à esquerda) e Zecca (à direita)

Ainda e mais outra vez a arquitectura de Bramante, tendo o Palazzo Caprini como exemplo, agora seguido por Jacopo Sansovino que, depois do saque de Roma, em 1527, se aloja em Veneza no ano seguinte. 
Jacopo Sasovino, aquando em Roma, conhece alguns dos trabalhos de Rafael e de Giulio Romano, já bem entrados no Maneirismo. Em 1536, começa a construção da Zecca (figuras 16.8 e 16.9) – a Casa da Moeda de Veneza. 
Figura 16.9 . Zecca . 1536 . Veneza . Jacopo Sansovino

Na realidade, esta comparação entre os dois edifícios, o primeiro piso da Zecca, embora de alvenaria rusticada, tem uma leitura menos protuberante, mais sofisticada, com os arcos todos iguais. Embora com um número ímpar de tramos, nove, o eixo não está minimamente expresso. O segundo piso, com a altura do primeiro, tem os tramos divididos por colunas dóricas. O fuste foi concebido por anéis sobrepostos, alternando duas dimensões de diâmetros. As couceiras das janelas, rectangulares, encostam às colunas e são coroadas por duas cornijas, sobrepostas, e também tangentes aos fustes das colunas, sendo a cornija de baixo parecer ser sustida por dois cachorros ou mísulas. Entre a parte superior da segunda cornija e o entablamento que coroa o segundo piso, existe um espaço de parede que parece querer desafogar o último disco constituinte das colunas. Sobre os ábacos dos capitéis dóricos assenta um entablamento com uma arquitrave muito baixa, um friso alto somente com os tríglifos e, por fim, uma cornija bastante projectada, também com cachorros a ampará-la.

O terceiro e último piso é constituído por colunas jónicas, ainda que com o mesmo tipo de fustes divididos por toros constantes do segundo piso. As janelas são também rectangulares e rematadas por frontões triangulares. A estranheza deste piso reside no facto do entablamento, reduzido apenas a dois componentes – a arquitrave e a cornija – assentar no vértice superior dos frontões, sem qualquer espaço de parede, parecendo ser justamente os ângulos dos pequenos frontões a suportarem o entablamento. Sansovino desenhou um dos edifícios mais bem conseguidos da Idade Moderna: a biblioteca Marciana (figuras 16.10), nome aludindo a São Marcos.
Figura 16.10 . Zecca (à esquerda) e Biblioteca Marciana (à dirieita) . Veneza . Jacopo Sansovino
Justaposta à Zecca, e na face virada ao Grande Canal, Sansovino desenhou a biblioteca Marciana tem três tramos, assim como também o mesmo número de tramos na fachada oposta e de frente para o Campanile, e vinte e um tramos virados para a praceta que a separa do Palácio dos Doges. Curiosamente, embora em números ímpares de tramos, em qualquer das fachadas, não há a mínima marcação do eixo de simetria especular. Não deixa de ser singular bem como a proporção de três tramos para vinte e um tramos.
As fachadas são resolvidas em dois pisos, coroados por uma elaborada balaustrada.
Parece-me deveras notável saber que foi o mesmo arquitecto que desenhou a Zecca e esta biblioteca, tão diferentes se apresentam no manuseamento dos elementos arquitectónicos. 
Assim, na figura 16.10, pode constatar-se a elaboração dos elementos que compõem uma e outra das fachadas, sendo mais caprichadas e equilibradas as da Biblioteca. Nesta, os cunhais são resolvidos por pilastras robustas, mais fortes do que as colunas a que se geminam. Os tramos, nos dois pisos, são marcados por arcos que se conformam entre colunas. No primeiro piso estes arcos apoiam-se em pilastras. Qualquer um destes elementos verticais é da ordem dórica a que um bem proporcionado entablamento confere um equilíbrio perfeito, com o friso bem desenvolvido e apresentando as métopas e os tríglifos. 
Por sobre a cornija do primeiro piso assenta uma balaustrada interrompida pelos pedestais das colunas, e pelos pedestais, estes mais estreitos, das colunas que conformam as serlianas do segundo piso. Esta variação de escalas é extremamente subtil, aprimorando o desenho da ordem jónica que perfaz este piso. Nos esquadros dos arcos e sobre os respectivos extradorsos, reclinam-se figuras femininas meio desnudadas.
Figura 16.11 . Biblioteca Marciana . Face virada para o Palácio dos Doges . Veneza . Jacopo Sansovino
Tanto no primeiro piso, como no segundo, o topo dos arcos é marcado por um cachorro figurativo e saliente que, conjuntamente com o óculo inserido no friso e num acrotério encaixado na balaustrada, fazem, efectivamente, uma marcação axial de cada tramo (figura 16.11)
Os óculos atrás referidos, de recorte fundindo um rectângulo com dois arcos que perfazem os seus lados menores, inserem-se numa cartela.
O entablamento do piso superior é magistral, na medida em que enfatiza todo o conjunto da elaboração compositiva. O friso é preenchido por putti segurando guirlandas, encimadas por cabeças femininas, que alternam com os óculos anteriormente referenciados. A eixo de cada estruturação vertical assentam acrotérios, alternando com a balaustrada, quais pedestais para a estatuária que se multiplica na demarcação do edifício. A referir que sobre os quatro cantos assentam outros quatro acrotérios, mais fortes que os já referidos, que são as bases de quatro altíssimos obeliscos que delimitam a superfície rectangular esguia do edifício.

Não é de admirar que Palladio se tenha referido à Biblioteca Marciana como o mais belo edifício construído desde a Antiguidade, conforme escreveu no Prefácio dos seus "Quatro Livros".

Se tivermos presente a obra de Bramante e a de Sansovino veremos que há já uma grande diferença no manuseamento da linguagem all’antica. É natural a evolução de uma linguagem, seja ela a da língua, propriamente dita, seja ela de qualquer outra espécie como a da arquitectura. E, assim, continuando na sequência naturalmente cronológica, ainda que por vezes se avance ou se recue, como aliás, tem sido bem patente, iremos a seguir abordar outras duas figuras determinantes do período a que se chamou de MANEIRISMO.

a seguir (23MAI19):
13
GIACOMO   BAROZZI   DA   VIGNOLA
Arquitecto e Tratadista
e
Giorgio VASARI