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14MAR19

GIULIO PIPPI - o MANEIRISTA ROMANO

Muito se tem especulado sobre o que se entende por Maneirismo. Ainda que simplificando, entendo que a la maniera, ou seja, à maneira de, é o modo como um arquitecto entendia o código linguístico que correspondia ao seu tempo de vivência, determinando prioridades de certos elementos em detrimento de outros. A escolha da panóplia lexical, dos sintagmas paradigmáticos ou mesmo de diferentes arrojos de formulação davam consistência às prioridades compositivas ou sintácticas que eram conjugadas a seu belo prazer. Tendo o pórtico helénico sido o berço, a fantasia artística foi o seu crescimento e natural maturidade. A ordem e a norma cederam à imaginação criadora e foram tomadas com as mais amplas liberdades pelos maneiristas. Sobre este período, suponho que Leonardo Benevolo é, ainda, o mais completo pensador.
Quanto ao cerne da questão, e se nos abstrairmos da época específica atribuída ao Maneirismo, penso não errar ao afirmar que o arquitecto que se preze ambicionará deixar a sua assinatura, a sua marca nas obras por si criadas. Sempre assim terá sido e sempre assim será. Gostará de ser reconhecido pelo seu modo de pensar e criar o espaço, materializando-o, ao arquitectá-lo à sua MANEIRA.

Mas indo ao Maneirismo da época a que este blog se dedica, o período que medeia entre o Renascimento e o Barroco, saliento os dois gigantes desta sensibilidade de arquitectar all'antica: Giulio Romano e Miguel Ângelo. Os dois foram os que mais ultrapassaram os limites da lógica edificatória. Souberam, como poucos, lidar com algumas incongruências as regras construtivas mais elementares.

E, assim, se de maneirismo se pode começar a falar com propriedade, é de Giulio Pippi De'Januzzi, ou seja, Giulio Romano. E, como primeira “boutade” arquitectónica, apenas um apontamento sobre a maneira como Giulio Romano decidiu emoldurar as janelas de sacada do segundo piso da Villa Lante (figura 14.1), em Roma.

Figura 14.1 . Villa Lante . 1519 . Roma . Giulio Romano

Ao rematar as padieiras com duas volutas, embora mínimas, equiparou-as com as pilastras que as enquadram. Sob o ponto de vista estrutural parece um absurdo que um rasgamento assuma o papel de pilastra. Reforça ainda mais insolitamente o facto das ombreiras começarem a 1/3 da altura esperada, quase como que se as "pilastras" não pousassem no chão. Como se flutuassem...



A convite de Federico Gonzaga, Giulio Pippi saiu da sua cidade e foi para Mântua, e daí o epíteto de romano, onde ficou até à sua morte, em 1546. Mântua foi a cidade que ele trocou por Roma, para aí fazer o Palazzo Te (figura 14.2), nos seus subúrbios. De 1524 a 1534, o palácio tomou forma. É uma das construções mais originais dessa época, onde Giulio Romano conseguiu dar largas à sua imaginação quimérica com um mecenas tão disposto a aceitar os seus devaneios artísticos.
Figura 14.2 . Palazzo Te (planta piso térreo). 1524/34 . Mântua . Giulio Romano
A planta do piso térreo, lida desde a entrada no edifício, prenuncia a possibilidade de uma perspectiva que, desde a porta principal se dirige a um outro pórtico, que medeia o corpo paralelo ao da entrada, e até à espécie de ninfeu, um porticado implantado em círculo, que se atravessa com o olhar até ao imenso campo mantovense. É a chamada perspectiva diafragmada, posto que “vence barreiras” (figura 14.3) até o olhar se poder perder no infinito. Esta noção de visualização do infinito, com interferências arquitectónicas somente em parte ocultantes, haveria de se transformar em perspectivas ad infinitum, no período barroco. 
Figura 14.3 . Palazzo Te (perspectiva aérea). 1524/34 . Mântua . Giulio Romano 
Depois de percorrido o cortile quadrado, e tendo-se entrado e seguido sempre em frente, encontra-se um segundo corpo paralelo ao primeiro, de entrada, e deparamo-nos com uma loggia aberta dos dois lados. É um espaço magnífico (figura 14.4), com o tecto abobadado e recoberto de pinturas enquadradas em molduras que repercutem os arcos torais e as cordas da abóbada. No entanto, o que por demais se evidencia são os suportes verticais que compõem este espaço aberto, esta loggia aberta dos dois lados. Sob o ponto de vista gramatical, e enquanto língua, diríamos que essa abundância de colunas e pilares e pilastras tornariam o discurso hiperbólico. 
Figura 14.4 . Palazzo Té (loggia do segundo corpo paralelo ao da entrada) . 1524/34 . Mântua . Giulio Romano
Os suportes são excessivos, enquanto estruturação. São a “justa medida” enquanto arquitectura maneirista. Esta conjugação de supérfluo versus necessário seria já uma ante visão barroca, que se viria a confirmar. 
Figura 14.5 . Porticado "encerrando" a perspectiva do palácio Te . 1524/34 . Mântua . Giulio Romano 
E, finalmente, o cenário que remata a implantação de todo o palácio, deixando ver, embora de forma bastante condicionada (figura 14.5), a paisagem mantovana. A visão diafragmada em vez da visão total. 
Figura 14.6 . Palazzo Te (alçado sudeste da loggia do segundo corpo paralelo ao da entrada). 1524/34 . Mântua
Giulio Romano
A fachada deste espaço aberto, alçado sudeste, vista, portanto, do lado do porticado curvo, também é um compêndio de motivos arquitectónicos, onde predominam as serlianas. As do pórtico central têm os lumes mais pequenos em comum (figura 14.6). As dos extremos, em vez de colunas sustentando os arcos e os linteis, utilizam pilastras.

Curiosa é a maneira como Giulio Romano desenhou as serlianas de um lado e de outro do pórtico central. A primeira serliana, logo a seguir ao centro, é completa na sua formulação, assim como a segunda, contando-se tanto para o lado direito como para o esquerdo. A separá-las encontram-se duas pilastras de fuste bem robusto. A terceira e a quarta serlianas prescindem das aberturas dos lumes rectos, ainda que mantenham as pilastras, transformando-se em simples arcos. É um exercício de estilo interessante, como se dos extremos laterais até ao centro a arquitectura se tornasse mais complexa e dinâmica.

Porém, a outra face deste corpo (figura 14.7), primeiramente visível para quem entra no palácio, é o cúmulo de uma atitude maneirista.
Figura 14.7 . Palazzo Te (alçado noroeste da loggia do segundo corpo paralelo ao da entrada) . 1524/34 . Mântua Giulio Romano
Com efeito, os tríglifos do corpo edificado ameaçam cair a todo o instante. Duas métopas, parte sólida de qualquer friso que se queira como estruturante, são vazias, inexistentes enquanto tal. São postigos, logo, denunciam espaço habitável no friso. 
A parede também revela algumas incongruências construtivas. As janelas cegas têm a padieira resolvida por meio de aduelas estabelecendo uma padieira recta. Mas, por cima deste fecho portentoso, de desmedido que é, ainda tem a encimá-lo duas rampantes que se apoiam, de lado, em mísulas. As rampantes estão nitidamente a ser sustidas pelas aduelas da padieira da janela. Por cima de um dos nichos arqueados por três enormes aduelas, que se intercalam com as janelas cegas, abre-se uma janela, insólita, por ser única e por isso desvalida em concordância com as outras semelhantes, mas cegas. A ordem dórica que compõe esta fachada é de uma verdadeira singeleza e esbelteza, como raramente se encontra. Duas notas ainda para este palácio que é deveras fonte inesgotável de sintaxes surpreendentes.

A sua fachada principal e a nordeste (figura 14.8), a do lado esquerdo, portanto, são de um sentido estrito de um rigor linguístico no que respeita à estruturação, e de uma vontade de perturbar essa delicadeza clássica com uma tipologia de paredes rudes, de estereotomia rusticada e reveladora da sua sobreposição e contrafiamento.
Figura 14.8 . Palazzo Te (alçado principal - direita – e alçado nordeste - esquerda). 1524/34 . Mântua
Giulio Romano
A leitura que se tem é a de um estereóbata sobre o qual assenta uma profusão de pedestais, ligados por zonas recuadas, sobre os quais assentam pilastras dóricas de bases elaboradas, assim como os capitéis. Sobre estas pilastras assenta um entablamento generoso, com arquitrave, friso desenvolvido com métopas e tríglifos bem desenhados, e uma cornija de grande projecção. Os cunhais são resolvidos por pilares apilastrados de expressão mais forte do que a das próprias pilastras. Sendo de estrato único, as paredes dividem-se em dois pisos separados por um friso singelo, qual faixa estreita. As janelas do piso térreo são rectangulares, com a padieira formada por aduelas que se vão projectando cada vez mais assim que se aproximam de cima, sendo a de fecho eloquentemente mais saliente. As janelas do segundo piso são de simples recorte sem qualquer espécie de tratamento. A entrada, no tramo central, é feita por um arco cujo intradorso atinge o friso separador dos dois pisos. 

O contraste entre a delicadeza da ordem e o rusticado das paredes é algo desconfortável, quase se assemelhando às primeiras casas renascentistas em que se queriam quase-fortalezas, mas onde não havia um contraste tão gritante entre estruturantes e estruturados. E rematando este alçado, um entablamento requintado, elaborado num deslumbrante dórico mutulado.

Antes de deixarmos este palacete, poderemos admirar um fresco da autoria também de Giulio Romano, a” Queda dos Titãs” (figura 14.9), que cobre as paredes e tecto da Sala com o mesmo nome. 
Figura 14.9 . Palazzo Te . “A Queda dos Titãs” .  Mântua . Giulio Romano
Esta visão apocalíptica de um edifício a desmoronar-se pode bem ser apontada como o destino que a parede do cortile, que a figura 14.9 mostra, poderia ter tido, não fora senão mentira impressa a duas dimensões.

E de Giulio Romano, vejamos como ele desenhou a sua própria casa.
O edifício já existia quando o arquitecto o comprou para sua morada. Mas a fachada que hoje ainda se mantém em Mântua, por certo com algumas alterações ulteriores ao desenho original de Giulio Romano, não deixa ainda assim de causar algumas perplexidades (figura 9.10). Desde logo, a divisão em oito tramos, ficando a entrada descentrada.
Figura 14.10 . Casa de Giulio Romano. 1544 . Roma . Giulio Romano
Talvez que a ênfase posta nesse tramo e as expressivas “incongruências” linguísticas tornem essa assimetria disfarçável. De apenas dois estratos e dois pisos, o piso térreo ergue-se sobre vãos de arcos abatidos e demarcados com fortes aduelas, vãos esses sob janelas quadrangulares que, apesar da padieira recta, também ostentam aduelas, constituindo-se em arcos rectos. Separa os dois pisos um friso, delicadamente esculpido, e levantando-se em ângulo ascendente, quebrando a horizontalidade. Este desvio altimétrico é devido à marcação imponente da porta de entrada, rematada em arco abatido com aduelas, sendo a central fortemente salientada da parede e encaixando-se sob o ângulo do pseudo-frontão, pois que indiciado apenas pelas rampantes.
Sobre esta composição centralizadora está colocado um nicho com uma imagem de Mercúrio. As janelas, quatro mais três, de cada lado da porta de ingresso, são emolduradas por frisos, também finamente elaborados, e rematam-se com frontões delimitados com o mesmo friso (figura 14.11)

No vértice de cada tímpano, Giulio Romano apôs uma cabeça de anjo e, como se isto só não fosse suficientemente estranho, ainda mais bizarro é o facto de cada janela estar encaixada num recesso arqueado, com a estereotomia anunciando-se radiante e salientando-se planimetricamente à medida que se aproximam do cume. Os oito arcos de volta perfeita, das janelas, contrastam com o arco abatido que encima a porta de entrada, esta também com a aduela central saliente.
Figura 14.11 . Casa de Giulio Romano (pormenor central) . 1544 . Mântua . Giulio Romano
A pedra de fecho é mais saliente do que as demais. Contrastando ainda com a severidade da estereotomia da fachada, Giulio Romano teve o requinte de tratar as molduras das janelas, bem como o friso, com minúcias escultóricas.

a seguir (28MAR19):
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SEBASTIANO SERLIO - o Incontornável

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