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9MAI19
MICHELANGELO (conclusão)
e
JACOPO SANSOVINO - Dois Palácios Venezianos e a simetria implícita
Figura 16.1 . Porta Pia (face interna) . 1561/65 . Roma . Miguel Ângelo
Para melhor entendermos o código linguístico de Miguel Ângelo, a Porta Pia (figura 16.1), em Roma, encomendada por Pio IV, da família Medici, de Milão, poderá ser a melhor demonstração de como a imaginação mais delirante pode dar lugar a um objecto arquitectónico assaz invulgar! Com efeito, o edifício constitui-se como uma parede de tijolo, a que se apõe uma torre de travertino, perfazendo-se em três tramos. A zona de tijolo, base da referida torre e constituindo-se em um tramo de cada lado, contém uma janela “ajoelhada” e um falso postigo superior, em cartela. Um simples friso, resolvido em faixa, divide este piso térreo de um ático-dado, também de tijolo, onde se insere um óculo cego. Este ático é rematado também por uma faixa, sobre a qual pousam três acrotérios trapezoidais, de faces curvas, sobre os quais pousam pares de volutas encimadas por uma pequena bola. As janelas têm um desenho requintado, com padieiras altas contornadas lateralmente por mísulas paralelepipédicas que sustentam os arranques laterais de um frontão triangular que prescinde de parte do seu entablamento. No tímpano do frontão insere-se uma concha. As cartelas rectangulares, de perfil com quebras, são rematadas por rampantes sinusoidais que abraçam um pequeníssimo frontão curvo, dividido a meio. Os óculos cegos, assim como o óculo da parte central são envoltos numa moldura estranhíssima, sem precedentes em qualquer das declinações clássicas. Dizem as más-línguas que Miguel Ângelo quis “lembrar” a Pio IV que a família a que ele pertencia, os Medici de Milão, era de origem modesta e com o ofício de barbeiros, daí a espécie de “toalha” que envolve o óculo.
A parte central mereceria um compêndio para a explicar em pormenor, tal a profusão de sintaxes ar-revezadas. No entanto, aqui somente deixo o apontamento sobre o frontão que encima a porta de saída da cidade: é um frontão triangular que contém no seu tímpano um outro frontão, este curvo e interrompido, com a parte superior das rampantes terminando em volutas que, por sua vez, seguram uma guirlanda sobre a qual se ergue uma placa relatando o facto da construção da porta e o nome do seu comitente.
Entre 1534/38, Miguel Ângelo, a pedido de Paulo III, projecta a Praça do Capitólio - Piazza del Campidoglio -(figura 16.2), que houvera sido um centro importante de Roma, tendo caído no olvido. É um sítio privilegiado da cidade, na colina Capitolina, e o Palazzo Senatorio, o edifício central, era o antigo Tabularium. Também renova a fachada do Palazzo dei Conservatori e erige um novo, o Palazzo Nuovo. A praça, com uma planta trapezoidal, fazendo os palácios iguais um ângulo de 80º com o palácio primitivo, o Senatorio, fecha-se em direcção à Basílica de São Pedro, ao longe, dinamizando a perspectiva longínqua.
Figura 16.2 . Piazza del Campidoglio . Planta e vista aérea . Roma
As fachadas dos dois edifícios iguais que fecham dois lados da praça são da autoria de Miguel Ângelo. A ele se atribui a “licença” de ter usado duas seriações de ordens. Assim, num alçado de dois estratos e dois pisos, insofismavelmente marcados, lançam-se oito pilastras coríntias, sobre pedestais elevados (figura 16.3). São pilastras sobrepostas a lesenas, unificando o alçado num quase único piso. No entanto, o piso térreo, resolvido em logge, apresenta colunas, à escala desse mesmo piso, suportando um entablamento entrecortado em cada um dos sete tramos em que se divide a fachada. Por sobre cada uma destas logge insere-se um pano de parede com janelas de sacada, com colunas conformando os seus umbrais. Coroam-nas frontões curvos, albergando conchas e de entablamento interrompido. A janela do meio, mais larga e mais decorada, é coroada com um frontão triangular, também de entablamento interrompido. A fachada é rematada por um impressionante entablamento que, por sua vez, é rematado por uma balaustrada dividida em sete tramos por meio de acrotérios paralelepipédicos, sobre os quais se colocam estátuas.
Entre estes acrotérios intercalam-se dois mais pequenos, dando a cada tramo da balaustrada uma leitura de concordância com a largura dos vãos das janelas.
Esta fachada é de uma beleza sublime. Quando parece que nada mais há a inventar-se, há uma nova distribuição lexical, com duas escalas diferentes e em simultâneo – as colunas têm metade da altura das pilastras – o que, em conjugação simultânea, criam uma nova sintaxe, criam a ORDEM MONUMENTAL.
Figura 16.3 . Palazzo Nuovo . Campidoglio . Roma . Miguel Ângelo
O chão desta praça é abaulada no seu centro, com uma curvatura convexa, tradução significativa da CAPUT MUNDI. A estátua equestre de Marco Aurélio marca o centro que é reforçado pelo desenho do chão bem como pela sua própria convexidade, superfície esferóide que a figura 16.4 transmite, um tanto, visualmente.
Figura 16.4 . Campidoglio . Estátua de Marco Aurélio . Roma
E, ainda que não seja de arquitectura que se trate, de seguida, não poderia faltar a grande obra-prima que constitui o tecto da Capela Sistina (figura 16.5).
Figura 16.5 . Tecto da capela Sistina . 1508/12 . Roma . Miguel Ângelo
Para além do que as figuras representam, de histórias infindáveis, parece-me que a "arquitectura do tecto" (figura 16.5) da Capela Sistina também poderia contar algumas "estórias" curiosas, nomeadamente como, por exemplo, se compõem mísulas e pedestais, conforme nos mostra a figura 16.6. É um pormenor em que essas estruturas são tratadas de uma forma, no mínimo, delirante!
Figura 16.6 . A Sibila Delfica entre "mísulas e pedestais" caprichosos . Miguel Ângelo
E, se ao iniciar a falar de Miguel Ângelo, comecei com uma escultura sua, termino com outra figura de Cristo, agora ressuscitado (figura 16.7), particularmente interessante pela ousadia com que Miguel Ângelo se atrevia na corte papal, ou não fosse ele o Divino!
Figura 16.7 . Cristo Ressuscitado . Mosteiro de San Vicenzo Martire . Bassano . Miguel Ângelo 1515 |
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JACOPO SANSOVINO
Dois Palácios Venezianos e a simetria implícita
Figura 16.8 . Palácio Caprini (à esquerda) e Zecca (à direita)
Ainda e mais outra vez a arquitectura de Bramante, tendo o Palazzo Caprini como exemplo, agora seguido por Jacopo Sansovino que, depois do saque de Roma, em 1527, se aloja em Veneza no ano seguinte.
Jacopo Sasovino, aquando em Roma, conhece alguns dos trabalhos de Rafael e de Giulio Romano, já bem entrados no Maneirismo. Em 1536, começa a construção da Zecca (figuras 16.8 e 16.9) – a Casa da Moeda de Veneza.
Figura 16.9 . Zecca . 1536 . Veneza . Jacopo Sansovino
Na realidade, esta comparação entre os dois edifícios, o primeiro piso da Zecca, embora de alvenaria rusticada, tem uma leitura menos protuberante, mais sofisticada, com os arcos todos iguais. Embora com um número ímpar de tramos, nove, o eixo não está minimamente expresso. O segundo piso, com a altura do primeiro, tem os tramos divididos por colunas dóricas. O fuste foi concebido por anéis sobrepostos, alternando duas dimensões de diâmetros. As couceiras das janelas, rectangulares, encostam às colunas e são coroadas por duas cornijas, sobrepostas, e também tangentes aos fustes das colunas, sendo a cornija de baixo parecer ser sustida por dois cachorros ou mísulas. Entre a parte superior da segunda cornija e o entablamento que coroa o segundo piso, existe um espaço de parede que parece querer desafogar o último disco constituinte das colunas. Sobre os ábacos dos capitéis dóricos assenta um entablamento com uma arquitrave muito baixa, um friso alto somente com os tríglifos e, por fim, uma cornija bastante projectada, também com cachorros a ampará-la.
O terceiro e último piso é constituído por colunas jónicas, ainda que com o mesmo tipo de fustes divididos por toros constantes do segundo piso. As janelas são também rectangulares e rematadas por frontões triangulares. A estranheza deste piso reside no facto do entablamento, reduzido apenas a dois componentes – a arquitrave e a cornija – assentar no vértice superior dos frontões, sem qualquer espaço de parede, parecendo ser justamente os ângulos dos pequenos frontões a suportarem o entablamento. Sansovino desenhou um dos edifícios mais bem conseguidos da Idade Moderna: a biblioteca Marciana (figuras 16.10), nome aludindo a São Marcos.
Figura 16.10 . Zecca (à esquerda) e Biblioteca Marciana (à dirieita) . Veneza . Jacopo Sansovino
Justaposta à Zecca, e na face virada ao Grande Canal, Sansovino desenhou a biblioteca Marciana tem três tramos, assim como também o mesmo número de tramos na fachada oposta e de frente para o Campanile, e vinte e um tramos virados para a praceta que a separa do Palácio dos Doges. Curiosamente, embora em números ímpares de tramos, em qualquer das fachadas, não há a mínima marcação do eixo de simetria especular. Não deixa de ser singular bem como a proporção de três tramos para vinte e um tramos.
As fachadas são resolvidas em dois pisos, coroados por uma elaborada balaustrada.
Parece-me deveras notável saber que foi o mesmo arquitecto que desenhou a Zecca e esta biblioteca, tão diferentes se apresentam no manuseamento dos elementos arquitectónicos.
Assim, na figura 16.10, pode constatar-se a elaboração dos elementos que compõem uma e outra das fachadas, sendo mais caprichadas e equilibradas as da Biblioteca. Nesta, os cunhais são resolvidos por pilastras robustas, mais fortes do que as colunas a que se geminam. Os tramos, nos dois pisos, são marcados por arcos que se conformam entre colunas. No primeiro piso estes arcos apoiam-se em pilastras. Qualquer um destes elementos verticais é da ordem dórica a que um bem proporcionado entablamento confere um equilíbrio perfeito, com o friso bem desenvolvido e apresentando as métopas e os tríglifos.
Por sobre a cornija do primeiro piso assenta uma balaustrada interrompida pelos pedestais das colunas, e pelos pedestais, estes mais estreitos, das colunas que conformam as serlianas do segundo piso. Esta variação de escalas é extremamente subtil, aprimorando o desenho da ordem jónica que perfaz este piso. Nos esquadros dos arcos e sobre os respectivos extradorsos, reclinam-se figuras femininas meio desnudadas.
Figura 16.11 . Biblioteca Marciana . Face virada para o Palácio dos Doges . Veneza . Jacopo Sansovino
Tanto no primeiro piso, como no segundo, o topo dos arcos é marcado por um cachorro figurativo e saliente que, conjuntamente com o óculo inserido no friso e num acrotério encaixado na balaustrada, fazem, efectivamente, uma marcação axial de cada tramo (figura 16.11).
Os óculos atrás referidos, de recorte fundindo um rectângulo com dois arcos que perfazem os seus lados menores, inserem-se numa cartela.
O entablamento do piso superior é magistral, na medida em que enfatiza todo o conjunto da elaboração compositiva. O friso é preenchido por putti segurando guirlandas, encimadas por cabeças femininas, que alternam com os óculos anteriormente referenciados. A eixo de cada estruturação vertical assentam acrotérios, alternando com a balaustrada, quais pedestais para a estatuária que se multiplica na demarcação do edifício. A referir que sobre os quatro cantos assentam outros quatro acrotérios, mais fortes que os já referidos, que são as bases de quatro altíssimos obeliscos que delimitam a superfície rectangular esguia do edifício.
Não é de admirar que Palladio se tenha referido à Biblioteca Marciana como o mais belo edifício construído desde a Antiguidade, conforme escreveu no Prefácio dos seus "Quatro Livros".
Se tivermos presente a obra de Bramante e a de Sansovino veremos que há já uma grande diferença no manuseamento da linguagem all’antica. É natural a evolução de uma linguagem, seja ela a da língua, propriamente dita, seja ela de qualquer outra espécie como a da arquitectura. E, assim, continuando na sequência naturalmente cronológica, ainda que por vezes se avance ou se recue, como aliás, tem sido bem patente, iremos a seguir abordar outras duas figuras determinantes do período a que se chamou de MANEIRISMO.
a seguir (23MAI19):
13
GIACOMO BAROZZI DA VIGNOLA
Arquitecto e Tratadista
e
Giorgio VASARI
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