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26SET19

ULTIMA MANIERA


O Saque de Roma, de 1527, além dos prejuízos inerentes a uma calamidade como essa que as tropas do imperador Carlos V desencadeou, fez com que muitos dos consagrados artistas e artesãos fugissem da Cidade Santa e se fixassem noutras cidades de Itália. Mas Roma e principalmente a Basílica de São Pedro do Vaticano continuava a avançar penosamente. Paulatinamente, os Papas continuavam a poder construir alguns marcos assinalando zonas citadinas e edifícios que ficariam ligados aos seus anos de papado.  
A partir de meados do século XVI o Maneirismo aproximava-se a um modo em que as premissas dos elementos tectónicos se iam diluindo, sem o vigor do Renascimento nem a força e pujança de alguns dos seus mais lídimos representantes, Miguel Ângelo e Giulio Romano, por exemplo. 
E é interessante notar como Palladio, no seu código pessoalíssimo, conseguia consciencializar-nos dos elementos tectónicos, sempre dando-lhes uma significação de força ou, pura e simplesmente omitindo esses mesmos elementos.
A este período de tempo, que medeia entre o Maneirismo e o início do Barroco, se poderá chamar de Ultima Maniera ou, como alguns historiadores preferem, a Terza Maniera.

Depois de termos apreciado a arquitectura civil de Vincenzo Scamozzi, vejamos uma igreja projectada por ele, São Caetano, e observemos bem o quão longe está dos princípios renascentistas.
A Igreja de São Caetano, em Pádua, é começada a 1581 e é  terminada cinco anos depois. Pertence à tipologia de planta centralizada (fig. 26.1 - zona amarelada), ainda na sequência de planos centralizados quer para habitação, igrejas ou mesmo urbanismo.
A planta da igreja é muito curiosa na medida que, para além do quadrado de cantos chanfrados que constitui a nave propriamente dita, ainda comporta três divisões que perfazem a capela-mor e os lados do "transepto", cada qual, por sua vez, dividida em três espaços.
Figura 26.1 .  Igreja de São Caetano . 1581/86 . Pádua .  . Vicenzo Scamozzi
É de referir que as capelas laterais intercomunicam com espaços exíguos, como se se tratasse de capelas cripto-colaterais, e mostram uma composição a b a'. Estas duas capelas, tanto do lado do Evangelho como a figura 26.2 nos mostra, como a do lado da Epístola, são cupuladas.  É ainda de referir que o tramo a' comporta o púlpito.
Figura 26.2 .  Igreja de São Caetano . Parede do lado do Evangelho . 1581/86 . Pádua .  . Vicenzo Scamozzi
E o "mesmo" desenho e ritmo perfazem a capela-mor: a b a (fig. 26.3)
É de notar, no entanto, que os cantos do quadrado, que desenha a planta, são chanfrados, estabelecendo-se um octógono irregular cujos lados a 45º são muito pequenos. Curiosamente, em Portugal e nos tempos barrocos, as plantas octogonais irregulares haveriam de conformar algumas das nossas igrejas, apelidadas de "elipse à portuguesa", como a igreja do Menino-Deus, em Lisboa, e a igreja de Santo Ildefonso, no Porto, como exemplos.
Figura 26.3 .  Igreja de São Caetano . Parede da cabeceira - Altar-mor . 1581/86 . Pádua  . Vicenzo Scamozzi
Há que referir o lavor extremo com que se desenham os elementos tectónicos: repare-se que as pilastras são sobrecarregadas na sua superfície, têm a êntase começando a 2/3 da altura, contrariando o normal 1/3, e as guirlandas, de cor mais clara, competem com os capitéis compósitos. Em alguns "devaneios", preconizando os tempos barrocos no tocante à hiper-estruturação que não nas forças telúricas, são efectivamente maneiristas, de um maneirismo exacerbando significados. Esta maneira de assumir-se a estrutura vertical para além da cornija, confluindo para a estrutura da abóbada, tem laivos de goticismo.

É de notar, também, o imenso entablamento em que se destacam o friso e a cornija, em detrimento da arquitrave.
E o tecto (fig. 26.4), "quase" como não poderia deixar de ser, estrutura-se nos mesmos elementos verticais - as pilastras - que parecem continuar até se encontrarem num círculo perfeito enquadrando Deus recebendo São Caetano.
Figura 26.4 .  Igreja de São Caetano . Tecto da "nave" . 1581/86 . Pádua  . Vicenzo Scamozzi

Figura 26.5 .  Igreja de São Caetano . Fachada principal . 1581/86 . Pádua  . Vicenzo Scamozzi

O alçado principal (fig. 26.5) é de uma extrema sobriedade quando comparado com os alçados interiores. É de estrato único com ático-piso falso para que se possa desenvolver, interiormente, a cúpula parabólica de contorno octogonal. Os tramos, estreitos, são divididos por pilastras compósitas, num ritmo a a' b a' a. Os tramos a são cegos mas com dois nichos sobrepostos, os tramos a' têm porta e uma janela que a encima e, finalmente, o tramo b tem a porta de acesso principal a que se sobrepõe uma cartela. O ático-piso divide-se também em cinco tramos, sendo, no entanto, aqui o ritmo a a b a a. O tramo b rasga-se em janela termal, que se repete nos quatro lados e que se vê, interiormente, rompendo a cúpula e iluminando o interior (fig. 26.5). 

É de notar que o Concílio de Trento finalizara há quase vinte anos.

Embora o pontificado de Sisto V tenha tido somente a duração de cinco anos - 1585/90 - é a ele que Roma deve a sua forma urbana. As longas vias com vistas pontuadas por obeliscos e pelas sete principais basílicas, além das fontes e das praças estrelares. A Roma Sistina foi a antecessora do urbanismo seiscentista que haveria de transformar as grandes cidades europeias.
De facto, a visão urbanística de Sisto V foi de uma grandiosidade sem precedentes. Para chamar novamente a Roma peregrinos de todos os cantos do Mundo, Sisto V concretizou essas romagens com a obrigatoriedade de se visitarem as sete basílicas mais importantes da Cristandade, a saber: São Pedro, São João de Laterão, Santa Maria Maior, Santa Cruz de Jerusalém, dentro da muralha, e São Lourenço, São Paulo e São Sebastião, estas três fora de portas ou fuori le mura, sendo as sete representadas na gravura da figura 26.6.
Figura 26.6 . As sete arquibasílicas de Roma
A par deste rasgar de novas vias e onde, segundo alguns autores, se ergueram fachadas falsas para que as ruas parecessem autênticas e bordejadas por casas verdadeiras, um dos pontos chave deste gesto grandiloquente consistiu na Praça do Povo, ou seja, la Piazza del Popolo, que era a grande entrada em Roma, pela Via Latina, para quem vinha de Norte. Com o obelisco Flamínio, de 24 metros de altura, no seu centro, e as três grandes vias de penetração directas ao coração de Roma:  Via del Babuino, Via del Corso e Via di Ripetta, conforme a figura 26.7 mostra, na sequência da esquerda para a direita, e o obelisco colocado no meio, anunciando a Via del Corso.
Figura 26.7 . Piazza del Popolo . Roma
Sisto V depositou nas mãos de Domenico Fontana algumas das obras de arquitectura tais como o Palácio Laterão (fig. 26.8), quase que uma cópia do Palácio Farnese, numa interpretação pouco inspirada do belo palácio romano. O Obelisco Lateranense é o mais alto obelisco egípcio ainda existente, e faz parte do conjunto que Sisto V ordenou que se implantassem para que os Romeiros tivessem pontos de referência no encaminhamento da visita às sete basílicas de Roma.
Figura 26.8 . Palácio Laterão . Roma . Domenico Fontana
Outro dos obeliscos mais emblemáticos é o obelisco Vaticano, de 25,50 m de altura, e um dos oito egípcios. O desenho que a figura 26.9 mostra reporta-se à trasladação do obelisco em direcção à sua colocação frente à fachada principal da basílica de São Pedro do Vaticano.

Figura 26.9 . Obelisco Vaticano . Roma . trasladação
Sisto V também encomendou a Martino Longhi, o Velho, a igreja de San Girolamo degli Schiavoni - São Jerónimo dos Eslavos (figura 26.9), com uma fachada de desenho bastante "petrificado", num claro repetitivo uso da linguagem maneirista sem o fulgor dos grandes mestres, sem audácias miguelangelescas. 
Figura 26.9 . Igreja S. Girolamo degli Schiavoni . Fachada . Roma . 1588/9 . Martino Longhi, o Velho
Com efeito, a fachada da igreja revela 5 tramos, a a' b a' a, com dois estratos mas reduzindo-se o segundo apenas aos tramos a' b a', dado que os tramos a ficaram reduzidos aos triângulos curvos que revelam a diferença entre os pés-direitos das capelas cripto-colaterais e o da nave central. O desenho não deixa, no entanto, de ser delicado, haja em vista a recessão entre os tramos, sendo os a mais recuados que os a' e b, como também o desenho dos capitéis da ordem toscana do primeiro estrato se confundir e se fundir com o remate esculpido do topo das paredes. O entablamento que divide os estratos é majestoso, dando suporte ao ático-dado, tal como o entablamento que recebe o frontão. As pilastras do segundo estrato apresentam caneluras a partir da pseudo-êntase até aos capitéis coríntios que ressaltam as faixas  elaboradas de remate das paredes.
Figura 26.10 . Igreja S. Girolamo degli Schiavoni . Roma . 1588/9 . Martino Longhi, o Velho

O interior desta igreja pouco ou nada acrescentará ao já visto: planta em cruz latina, embora com três capelas cripto-colaterais de cada lado da nave. Aliás, pela figura 26.9 se pode ver bem como essas capelas se "aliam" à sustentação da igreja. 

O interior  (figura 26.10) nada de novo apresenta sob o ponto de vista estrutural. Os elementos tectónicos apresentam-se bem definidos e são dados  como suporte para uma decoração pictórica abundante.


Ainda Sisto V e a encomenda da sua capela na Basílica de Santa Maria Maior, como que perfazendo o braço do transepto de lado da Epístola (lado direito para o fiel que entra no templo). É uma notável obra que congrega uma cripta e um espaço quadrado que se alonga nos seus quatro lados, perfazendo a capela-mor, os dois braços de um pretenso transepto e um átrio. Estes quatro acrescentos pouca profundidade possuem, como se pode observar na figura 26.11. Esta capela, também chamada de Sistina, é posterior à Capela Sistina do Palácio Vaticano, a celebrada "Capela Sistina", encomendada por Júlio II e dedicada a Sisto IV, um dos Papas que mais contribuíram para a disseminação das artes, em Roma. Os nomes de Pietro Perugino, Sandro Botticelli, Domenico Ghirlandaio e, sobretudo, de Miguel Ângelo, perfazem o número de artistas que nela trabalharam.

Figura 26.11 . Basílica de Santa Maria Maior . Roma . 
A Capela Sistina tem uma cripta (figura 26.12) onde hoje se encontra o altar que outrora serviu de altar-mor e onde Santo Inácio de Loyola rezou a sua primeira missa.
Figura 26.12 . Capela Sistina . Santa Maria Maior . Roma . 
Para o Papa Paulo V, da família Borghese, o arquitecto da sua preferência foi Flaminio Ponzio. Este foi o arquitecto da Capela Paulina (fig. 26.13), na Basílica de Santa Maria Maggiore, perfazendo o braço do lado do Evangelho, confrontando a Capela Sistina. É interessante verificar-se uma certa analogia na eloquência do discurso arquitectónico desta capela com a Igreja de São Caetano de que tratámos acima, da autoria de Vincenzo Scamozzi.
Figura 26.14 . Cappella Paolina . Pormenor da cúpula . Santa Maria Maggiore . Roma . 1605/11 . Flaminio Ponzio
Esta dependência da basílica traduz-se fisicamente como um edifício centralizado anexado ao seu corpo principal. E é de tal modo diferenciado que tem uma cúpula iluminada por um lanternim e tambor com oito janelões (figura 26.15), além de três outras janelas que se inserem em três dos quadrantes que encerram os pequenos braços da cruz grega que desenha a planta deste espaço. Aliás, do outro lado do transepto, a Capela Sistina também tem um exterior igual.
Figura 26.15 . Cappella Paolina . Alçado . Santa Maria Maggiore . Roma . 1605/11 . Flaminio Ponzio

Os elementos arquitectónicos quase desaparecem tal a profusão de decoração (figura 26.16), de diversidade de mármores, de requadros emoldurando as pilastras, os baixos relevos, decorando o topo dos tramos, quase se confundindo com os capitéis, e o exacerbamento do entablamento que percorre todo o perímetro interior da capela.

Figura 26.16 . Capela Paolina . Santa Maria Maggiore . Roma . 1605/11 . Flaminio Ponzio
Figura 26.17 . Capela Paolina . Santa Maria Maggiore . Roma .
Túmulos do Papa Paulo V (esquerda) e Clemente VII (direita)

Repare-se que o próprio altar-túmulo de Paulo V, bem como o do Papa Clemente VIII que o confronta, se inserem no vão central de uma parede tripartida por três colunas isentas, embora encostadas ao plano da parede. Por sobre estas colunas corre um entablamento que se projecta em sucessivos avanços, proporcionados pelas colunas. Por sobre este entablamento e dando continuidade às colunas, erguem-se umas "colunas-cariátides", separando cenas figurativas que, tal como no "primeiro piso", emolduram as figura dos Papas. Estas paredes não deixam de ser como que Arcos de Triunfo.
É um autêntico acumular de elementos tectónicos e figurativos em que a verdadeira estrutura fica quase desapercebida.

O Maneirismo foi um período de transição entre o Renascimento e o Barroco. Não transição no sentido que por muitos é tomada como "sem alma e sem chama", quase que como um intervalo, um espaço amorfo. Não, de todo... sob o prisma das artes e da arquitectura, os seus artistas reflectiram um dos períodos mais conturbados da História da Europa, de descrenças metafísicas, de iniciação científica e de descobertas de novos mundos que haveriam de dar o esplendor aos tempos barrocos.


a seguir: (10OUT19)
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O BARROCO

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