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FRANCESCO CASTELLI - BORROMINI (II)

Talvez a única obra de Borromini fora de Roma, e mais precisamente em Nápoles, seja o Altar Filomarino (figura 37.1), na Igreja dos Santos Apóstolos, construído para o Cardeal Ascânio Filomarino, cerca de 1635.
Este altar, construído em data tão do início das obras realizadas por Borromini, haveria, contudo, de ser já portador de alguns dados especificamente borrominianos. Assim, a curvatura côncava, que os dois tramos exteriores apresentam, estaria na génese da fachada de San Carlino, assim como a quase "indefinição" da ordem das colunas, também. A fachada curva côncava também viria a ser o grande mote da fachada do Oratório dos Filipinos, de que trataremos de seguida. O frontão curvo, quebrando-se para se intrometer um frontão triangular também seria um dos elementos lexicais borrominiano. O tímpano do frontão também é interrompido para a inclusão de uma Cartela abraçando uma tábula oval. Por último, como remates dos dois tramos extremos e sobre os respectivos entablamentos, há a sobreposição de "merlões jónicos" ou sejam do mesmo tipo de remate que Miguel Ângelo utilizou, pela primeira vez, na Porta Pia, em Roma.
Figura 37.1 . Altar Filomarino . 1635 . Igreja dos Santos Apóstoles . Nápoles
Francesco Borromini
É também de se notar não só a curvatura convexa da balaustrada que delimita o altar bem como no desenho dos balaústres, iguais aos de San Carlino.
É preciso dizer-se que Borromini era um apaixonado pela obra de Miguel Ângelo.

Talvez que uma das grandes diferenças entre um e outro se deva ao maneirismo extrapolando e exorbitando as funções estruturantes, que Miguel Ângelo utilizava, e a exacerbação das estruturas de Borromini, tão aparentemente necessárias, mesmo imprescindíveis.

Em 1637, aquando do início das obras de San Carlino, foi-lhe encomendado o Oratório de São Filipe de Neri, a erigir junto à Igreja de Santa Maria in Valicella (figura 37.2). A proposta era bastante arrojada, no sentido em que haveria que se colar à fachada da Igreja. Haveria também que se criar dois claustros. Borromini viria a optar pela localização do oratório no extremo poente da fachada sul (à esquerda do corredor central), ainda que a zona de destaque da fachada - a superfície côncava - corresponda à entrada principal para a sala de música, ou seja o oratório propriamente dito, e o resto da fachada - a parte plana - corresponde, a poente, ao resto da sala e, a nascente, à entrada para o complexo monástico alinhada com o referido corredor.
Figura 37.2  . Oratório de São Filipe Neri e Igreja Santa Maria in Valicella . Roma

Paolo Maruscelli, em 1631, propunha o desenho de fachada da figura 37.3. O alçado da igreja mantinha uma preponderância que reduzia drasticamente o Oratório à altura somente do primeiro estrato. Em contrapartida, Borromini propôs a jóia barroca que a figura 37.4 mostra.
Figura 37.3 .  Fachada de Santa Maria in Valicella e o Oratório dos Filipinos. Proposta de Paolo Msruscelli
Figura 37.4 .  Fachada de Santa Maria in Valicella e o Oratório dos Filipinos. Proposta de Borromini
O desenho mostra-nos um corpo mais alto, com a entrada principal para o Oratório, uma zona central com cinco tramos sendo os três centrais rematados por um frontão cuja génese está no altar Filomarino (figura 37.1) e, ladeando este corpo central e mais alto, há mais um tramo de cada lado do corpo central e, do lado esquerdo (lado sul) mais um tramo, também recuado.
Figura 37.5 .  Fachada do Oratório dos Filipinos. Roma . 1637/ . Francesco Borromini
A figura 37.5 mostra apenas a parte central da fachada de Borromini, não mostrando o tramo do extremo sul. Apenas se podem ver a porta central da composição, de acesso à sala da música, e, à direita, a porta de acesso ao convento, junto à ilharga da fachada da igreja.
O conjunto da fachada sul está bem expresso na figura 37.6.
Em data posterior foram acrescentadas as duas aletas que ladeiam os cinco tramos primitivos, completando um quarto piso.
Figura 37.6 .  Fachada da Igreja de Santa Maria in Valicella e do Oratório dos Filipinos. Roma . 1637/
Francesco Borromini
É uma obra também digna da maior atenção, sob vários aspectos. Um dos mais importantes, será o facto da fachada ter sido construída em tijolo, um material muito mais barato do que qualquer tipo de mármore. A fachada do corpo central divide-se em dois estratos, tendo o primeiro dois pisos.
Cada um dos três pisos tem janelas distintas (figura 37.7). Assim, as janelas do primeiro piso (à esquerda da imagem) têm um recorte muito especial, reiteradamente borrominiano, na medida em que o arquitecto, com base em desenhos do período gótico, recorta as padieiras, no seu intradorso, em três troços rectos e dois troços convexos, envolvendo-os, depois, num arco perfeito. As janelas do segundo piso (no meio da imagem) são em arco, encimadas por arquitraves que se assumem como triangulares no meio da sua extensão, exceptuando o arco da janela central. Por fim, as do terceiro piso (à direita da imagem)recuperam a experimentação que Borromini havia feito no Palácio Barberini e introduz na linguagem clássica barroca uma solução de padieira a que eu apelidei de ORATORIANA e que consiste na intrusão de um arco pleno a meio do entablamento recto da padieira da janelas.
Figura 37.7 .  Janelas da Fachada da Igreja de Santa Maria in Valicella e do Oratório dos Filipinos. Roma . 1637/
Francesco Borromini
Os cinco tramos perfazem uma curvatura côncava, e são divididos por pilastras da ordem jónica, mas com um desenho extremamente sofisticado e levado a um quase despojamento, como a figura 37.7 também nos revela. E, mais uma vez, os enrolamentos dos acantos se fazem de fora para dentro, como já havíamos visto em San Carlino.
O claustro maior também tem alguns aspectos dignos de registo como sejam os cantos arredondados e a ordem monumental, com pilastras a atingirem "quase" o topo do segundo piso (figura 37.8).
Figura 37.8 .  Claustro grande do Oratório dos Filipinos. Roma . 1637Francesco Borromini

Digo quase porque, na realidade, os capitéis, que deveriam chegar ao nível inferior do entablamento, na realidade chegam a uma cota tal que necessitam de uma espécie de ábacos que não são mais do que o prolongamento das pilastras, facto insólito na gramática clássica, para além deste claustro ter uma  planta com uma forma muito sui generis,
A figura 37.9 mostra o desenho da Biblioteca do Oratorio (figura 37.10), como andar superior à Sala do Órgão (figura 37.11).
Figura 37.9 .  Corte transversal  da Biblioteca e da Sala do Órgão do Oratório dos Filipinos
Roma . 1637 . Francesco Borromini
A Biblioteca veio a servir de modelo a várias bibliotecas. Repare-se que tem duas estantes sobrepostas, potenciando um efeito de vastidão de espaço. O tecto, com desenhos conturbados oferece um certo ar de gravidade ao acto da leitura. 
Figura 37.10 .  Corte transversal  da Biblioteca  do Oratório dos Filipinos. Roma . 1637 . Francesco Borromini
E, sob este espaço de concentração estudiosa, a Sala do Orgão, a razão primeira para o erguer deste complexo monástico. Borromini desenha um espaço de estratificação algo complexa, cujas pilastras se prolongam em faixas que se cruzam quase constituindo uma rede estruturante do tecto. Neste,e  no centro, desenvolve-se um medalhão pintado.
Figura 37.11 .  Corte transversal  da Sala do Órgão  do Oratório dos Filipinos. Roma . 1637 . Francesco Borromini
A configuração deste tecto (figura 37.12) prenunciava já o tecto mais elaboradamente requintado e impositivo da tecto de Propaganda Fide.
Figura 37.12 .  Tecto da Sala do Órgão  do Oratório dos Filipinos
Roma . 1637 . 
Francesco Borromini
O último elemento do Oratório a ser construído foi a torre sineira, ela também um elemento fortemente vincado nos céus de Roma (figura 37.13).

Figura 37. 13.  Torre do Oratório dos Filipinos. Roma . 1637/Francesco Borromini
O corpo do edifício, de quatro pisos divididos em dois falsos estratos e três tramos separados por pilastras simplificadas e por recessos nas paredes dos tramos, leva, sobre o tramo central, a torre sineira cujo perímetro se pode resumir como a resultante de uma planta rectangular com os lados côncavos e convexos, acentuados por pequenas pilastras coríntias. O canto do edifício, isento, também apresenta uma aresta sofisticada concavamente, no fim da qual e junto ao pavimento da rua, se encastoa uma fonte.

De 1642 a 1660 ergue-se a igreja de Sant'Ivo alla Sapienza, cujo complexo a que a igreja pertenceria viria a ser a Universidade de Roma.
Por quase todos os historiadores é considerada a sua obra-prima. Em termos absolutos também me parece que assim possa ser, dada a complexidade de significados e respectivos significantes que este espaço congrega, quer interior, quer exteriormente, nas zonas onde se pode expressar, como veremos.
A igreja deveria ser construída no fim de um pátio, já edificado por Pietro da Cortona, pátio esse formado por dois corpos rectangulares paralelos, com entrada para o Corso del Rinascimento e, do lado oposto, com fachada para o Largo de Sant'Eustáquio, local importante na malha urbana romana.
Ao fundo do pátio, implantou Borromini a igreja, no lado oposto correspondente à entrada, numa superfície curva, meio cilindro côncavo, onde praticou aberturas que não entrassem em conflito com as arcadas existentes, tendo até o desenho sido bastante simplificado, com esse propósito, como aliás, a figura 37.14 bem o demonstra. À sucessão das arcadas existentes, Borromini contrapôs igualmente arcadas mas cegas, exceptuando as janelas rectangulares nelas inseridas. É, sem dúvida, um dos momentos altos que revela o respeito de quem projecta pela obra já existente. Não mimetiza mas segue as linhas mestras, reduzindo o brilho que, porventura, poderia ter exacerbado.
Figura 37. 14 .  Palácio da Sapiência . Roma . 1642/60 . Vista a partir da entrada . Francesco Borromini
A planta do conjunto é interessante, mostrando a simplicidade do esquema e a funcionalidade aparente, conforme mostra a figura 37.15.
Figura 37. 15.  Palácio da Sapiência . Planta do piso térreo . Roma . 1642/60 . Francesco Borromini
Mas o desenho do corpo da igreja teria muito mais a dizer. Repare-se que o Concílio de Trento tinha acabado há muito próximo de um século (1545) e as igrejas centralizadas tinham caído na "marginalidade da centralidade". Para além disso, a base da planta assenta numa estrela de David, a estrela de seis pontas do judaísmo. A somar a estes "heréticos" adjectivos, ainda acrescia o facto de o hexágono ser a única figura geométrica que tem a mediana que une os dois lados paralelos (um deles para a colocação da porta de entrada) mais curta do que a linha vertical que une os dois vértices, tornando a penetração no templo mais pequena do que a sua largura do "transepto". Tudo isto Borromini resolveu de uma maneira brilhante, que a figura 37.16 mostra bem. A cada ângulo do triângulo Borromini retirou-lhe uma poção de círculo; a cada lado acrescentou-lhe meio círculo. Obteve-se uma figura geométrica perfeita, com os três lados iguais. Localizou a entrada num dos ângulos arredondados e o altar-mor na "abside" oposta.
Figura 37. 16 .  "Estrela de São Simão 
A planta do piso térreo (figura 37. 17 - lado esquerdo) tem o pavimento uniformemente revestido a mosaico preto e branco, não excluindo qualquer porção do espaço.
Figura 37. 17 .  Igreja de Sant'Ivo alla Sapienza . Planta do piso térreo e "planta" do tecto . Roma . 1642/60 . Francesco Borromini

Em contraste, a "planta" do tecto (figura 37. 17 - lado direito) é resolvida por dois motivos que se alternam, e que o branco tudo uniformiza como, aliás, todo o interior da igreja, somente com alguns toques dourados.
É notável como aparece a "capela-mor" que mais não é do que um nicho (figura 37.18), não corrompendo o desenho rigoroso da planta/volume que Borromini quis inalterado. Este desenho desenvolve-se desde o chão até ao início do lanternim, fazendo com que a superfície da cúpula também tenha as mesmas protuberâncias e reentrâncias das paredes. 
' Somente quase a chegar ao topo, as "agruras da vida terrena" se vão atenuando até se resolverem num círculo, a "perfeição da vida eterna". Se alguma dúvida houvesse que a arquitectura não conseguisse "falar", este exemplo é por si só capaz de desfazer essa dúvida '
Figura 37. 18 .  Igreja de Sant'Ivo alla Sapienza . "Capela-Mor" . Roma . 1642/60 . Francesco Borromini
A contemplação do topo da cúpula, que acompanha todas as "vicissitudes" terrenas, até à perfeição do círculo (figura 37.19 é um dos aspectos mais deslumbrantes deste espaço em que o percurso até ao centro quase não se sente, pois que se sente com grande intensidade uma ascensão, como se uma pessoa pudesse redimir-se das imperfeições terrenas e fosse inspirada para o Alto, tornando este espaço dos poucos espaços religiosos em que a centralidade se cumpre, sem o percurso linear até à Capela-Mor que, como se viu, nesta igreja não é mais do que um altar preenchendo, na totalidade, a altura de um dos três segmentos convexos.
Figura 37. 19 .  Igreja de Sant'Ivo alla Sapienza . Paredes e cúpula . Roma . 1642/60 . Francesco Borromini
Esta cúpula é a única que repercute todas as idiossincrasias do desenho da planta. É, de facto, um desenho consecutivo, de compromisso total entre plantas, independentemente dos sucessivos  níveis de alturas.
Figura 37. 20 .  Igreja de Sant'Ivo alla Sapienza . Cúpula . Roma . 1642/60 . Francesco Borromini
E, desde o alto, a vista para o chão também tem algo de vertiginoso, como mostra a figura 37.21. No entanto, esta foto, já com alguns anos, corresponde a uma época em que, desrespeitando-se a vontade do arquitecto, a igreja foi pintada de cores variadas, traindo a pureza do branco projectada por Borromini. Também no anel que inicia o lanternim se podem ver os montes assinalando o brasão dos Chigi.
Figura 37. 21.  Igreja de Sant'Ivo alla Sapienza . Chão visto da cúpula . Roma . 1642/60 . Francesco Borromini
A iluminação zenital deste espaço faz-se através de um tambor, também de recorte hexagonal, de lados curvos com dois tipos de janelas que se alternam. O exterior da cúpula é uma superfície parabólica, formada por várias camadas, à moda lombarda, e as aduelas são côncavas e rematadas por "merlões jónicos", à moda de Miguel Ângelo (figura 37.22).
Figura 37. 22 .  Igreja de Sant'Ivo alla Sapienza ." Merlões jónicos" da cúpula . Roma . 1642/60
Francesco Borromini

O tambor resulta de ser "aprisionado" por pilastras triplas sobre a qual se coloca um lanternim. Nunca é demais sublinhar no virtuosismo Borrominiano dos contrastes constantes e infatigáveis tais como as superfícies convexas contrapondo-se às côncavas (figura 37.23). O lanternim consiste de uma planta hexagonal, de lados côncavos reentrantes e os ângulos formados por colunas geminadas, na direcção sucessiva das aduelas rematadas pelos merlões bem como nas pilastras triplas que "apertam" o tambor.
Figura 37. 23 .  Igreja de Sant'Ivo alla Sapienza . Tambor, cúpula, lanternim e remate . Roma . 1642/60
Francesco Borromini
A planta da figura 37.24 não é mais do que a representação a três níveis do tambor e cúpula: o terço superior representa a planta do tambor onde se observam bem as pilastras triplas contraindo o perímetro redondo do tambor; o terço esquerdo, a azul, representa o desenho do tecto da abóbada e, finalmente, o terço direito inferior mostra a planta da cúpula, onde se pode verificar o lanternim, as camadas não-concêntricas da cobertura da abóbada e o topo dos "merlões jónicos" que acentuam o repuxar do círculo que está na base do desenho.
Figura 37. 24 .  Igreja de Sant'Ivo alla Sapienza .Plantas do tambor e lanternim . Roma . 1642/60
Francesco Borromini
Rematando o lanternim, Borromini encima-o com uma espiral (figura 37.25), traduzindo a evolução sem fim do conhecimento científico - Santo Ivo era a universidade de Roma - subjugado pelo mundo sobre o qual a Cruz pontifica. Penso não errar afirmando que é um remate único, sem igual... "uma nova espécie de zigurate"...
Figura 37. 25 .  Igreja de Sant'Ivo alla Sapienza . Remate do lanternim . Roma . 1642/60
Francesco Borromini
e Sant'Ivo alla Sapienza é um marco sem igual no céu de Roma...
a seguir: (12MAR20)
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FRANCESCO CASTELLI - BORROMINI (III)

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