8NOV18
A FLORENÇA de FILIPPO BRUNELLESCHI
architettura alla moderna versus all'antica
A SERLIANA

Em Florença e em 1419 foi encomendado o Hospital dos Inocentes. A fachada principal, que fecha o lado sudeste da Praça da Santíssima Anunciada (figura 3.1), é resolvida em nove arcos de volta inteira (tendo posteriormente sido acrescentados mais dois arcos, um de cada lado), suportados por colunas coríntias, de capitéis finamente elaborados (figura 3.2) bem assim como os ábacos quadrilobados com rosetas.

Figura 3.1 . Hospital dos Inocentes . 1419 . Florença . Filippo Brunelleschi
Sobre os extradorsos dos arcos assenta um lintel que se divide em três partes, lembrando um entablamento em que a arquitrave se constitui em duas molduras sobrepostas de superfícies distintas. O friso é uma mera faixa rebocada, a cornija é muito reduzida em altura e sobre ela assentam as janelas, constituindo-se, assim, como que um parapeito corrido. A cada um dos arcos, e a eixo, sobrepõe-se uma janela rematada por frontão triangular. 
Figura 3.2 . Capitel da colunata frontal do Hospital dos Inocentes . Florença
Nos esquadros, entre cada um dos arcos, aloja-se um medalhão circular, de contorno salientando-se em três níveis, emoldurando a figura de uma criança, enfeixada (figura 3.3) como costumava o uso de então, fazendo jus ao fim a que era devotada a instituição.
Figura 3.3 . Medalhão de menino enfaixado .Hospital dos Inocentes . Florença . Irmãos Della Robia
Falando-se de arcos descarregando directamente sobre colunas entra-se na diatribe entre os seguidores da arquitectura ANTIGA e os da arquitectura MODERNA.
Leia-se que por arquitectura antiga se entendia o espólio da arquitectura que a civilização romana tinha deixado pela Península Itálica e seus domínios, enquanto que por arquitectura moderna se entendia a arte dos godos - os bárbaros - a arquitectura a que se chama gótica.
Esta arquitectura difundiu-se mais no centro europeu, com principal destaque para França e, mais concretamente, para os arredores de Paris, quando o Abade Suger resolveu reconstruir a Abadia de Saint-Denis, em 1137, assim nascendo o novo estilo – o GÓTICO.

A questão de se pretender um reflexo límpido de sintonia construtiva, isto é, de se pretender “escutar a voz” dos materiais e transcrever essa consonância, que os antigos nos legaram, prende-se com o facto das fachadas porticadas, de herança grega, serem constituídas por colunas suportando um entablamento ou um simples lintel ou verga ou padieira, sempre com um perfil recto. Por este motivo, a pedra constitutiva do lintel não poderia exceder um vão grande e daí a proximidade das colunas, variando os espaços entre estas, ou sejam os intercolúnios, apenas entre 1 1/2 de diâmetro (PICNOSTILO) a 4 diâmetros (AREÓSTILO). 
NOTA:
SISTILO – 2 diâmetros, EUSTILO – 2 ¼ diâmetros e DIASTILO – 3 diâmetros
.
Este elemento recto estabelecia a divisão entre a parte habitada e a cobertura, normalmente a duas águas, em que a empena daí resultante se formalizava em triângulo. E é esta figura geométrica, que tapa o vão desaproveitado do telhado, que se vai transformar numa das peças mais requintadas da composição arquitectónica nobilitando a fachada principal dos templos- o FRONTÃO.
E dificilmente se encontrará uma forma mais prodigiosa de se "invocar" um triângulo do que estas imagens (figura 3.4) que um dia realçaram metade do frontão do Partenon.
Figura 3.4 . Fragmento do Partenon
Ao invés da extensão algo limitada  do lintel, o arco, seja ele de volta perfeita, seja ele apontado, ou seja abatido foi a invenção que permitiu grandes espaçamentos entre os pontos de apoio verticais, quer de colunas, quer de pilares ou quer ainda de paredes. 
E sendo o Renascimento o renascer da arquitectura clássica, onde não havia qualquer arco interveniente neste processo construtivo, não deveriam as colunas constituírem-se  como apoios dos arcos. 
Na figura 3.5 justapôs-se a fachada do pórtico da Villa Rotonda, de Palladio, com a fachada de arcaria do Hospital dos Inocentes, demonstrando-se as duas concepções: dos antigos e dos modernos, se forem lidas as fachadas da esquerda para a direita, correspondendo, no entanto, a cronologia na direcção oposta.
Figura 3.5 . Villa Rotonda vs. Hospital dos Inocentes
Prosseguindo na observação da obra arquitectónica de Brunelleschi, olhemos para a planta da igreja de São Lourenço (figura 3.6), em Florença, supostamente, a de fundação mais antiga da cidade. Depois de no capítulo anterior termos visto a Sacristia Velha, do lado do Evangelho (a laranja na figura), olhemos agora para o corpo da igreja.
Figura 3.6 . Igreja de São Lourenço com a Sacristia Velha (lado Evangelho), Sacristia Nova (lado da Epístola) e a Capela dos Príncipes (cabeceira). Planta . Florença
Vejamos como Brunelleschi  interpreta o problema entre antigos e modernos, como oferece um dos espaços mais bem conseguidos de arquitectura.
Pelas premissas arrojadas patentes nesse espaço, pela modularidade, pelo emprego das matérias fundamentais para a leitura contrastante dos interiores – a pietra serena contrapondo-se ao reboco pintado de branco -  num jogo de rigor geométrico pouco habitual, parece que este espaço religioso foi uma espécie de “ensaio” do espaço fabuloso que Bruneleschi haveria de construir uns anos depois: a igreja de Santo Spirito, também em Florença e já referida no capítulo 2 (25OUT18)
Mas, entretanto, depois de 1441, os trabalhos foram entregues a Michelozzo, arquitecto que se encarregaria do seu prosseguimento, dado que Brunelleschi, então já ancião, se dedicava a outras obras. 
Eis o interior de São Lourenço (figura 3.7), astuciosamente ligando as duas concepções. Penso que nunca será demais enaltecer a capacidade de Brunelleschi ter lidado de forma tão exemplar com a questão das duas opções: alla moderna, na colunata da nave central; all'antica, no porticado impresso nas paredes das naves laterais. É também de salientar que as pilastras, que visualmente simulam ou estruturam as paredes laterais exteriores, são sobrepostas e encimadas por um entablamento em tudo semelhante ao que Brunelleschi usa na fachada do Hospital dos Inocentes.
Figura 3.7. Igreja de São Lourenço . Interior - nave central e naves laterais 
Também nesta mesma matriz se desenvolve o entablamento que se sobrepõe à arcada da colunata na nave central. 
Mas, como facto deveras extraordinário e digno de registo, Brunelleschi parece determinado a aceitar os antigos. Somente por distracção se pode deixar de reparar bem na entrega dos arcos sobre as colunas. De facto, acima dos ábacos repousam peças que, na sua composição, não são mais do que fragmentos de um pretenso entablamento (emoldurado a amarelo na figura 3.7), correndo ao longo da nave central, e bem constituído nos seus três clássicos componentes: arquitrave, friso e cornija. É como se de um imaginado entablamento corrido restassem apenas fragmentos iguais, sobrepondo-se cada um deles a cada um dos ábacos das colunas. De notar, ainda, que tanto as colunas como as pilastras são da mesma ordem, a coríntia (ainda que divergindo em pormenores), contribuindo-se ainda mais para uma homogeneidade visual. É também digno de registo o facto de a cobertura das naves laterais ser resolvido em cúpulas integrando as próprias perxinas, sem solução de continuidade, e a cobertura da nave central ser plana, correspondendo a uma cobertura de madeira como também soía ser a cobertura tradicional das basílicas. 
Curiosamente, a sua fachada (figura 3.8), apesar de concursos em épocas diversas para a sua conclusão, com concorrentes que incluíram Miguel Ângelo, Rafael e Giuliano da Sangallo, entre outros, nunca se chegou a realizar por problemas técnicos e por falta de verbas. 

Figura 3.8 . Igreja de São Lourenço . Fachada poente

Finalmente, chega-se àquela que se considera ser uma obra-prima do espaço arquitectural: a igreja de Santo Spirito, mais tarde elevada a Basílica Menor, que se iniciou em 1444 e veio a ser consagrada em 1487, quarenta e três anos depois, sem, no entanto, lhe ter sido dada a fachada correspondente à época quinhentista, vindo a ser fechada já na época barroca (figura 3.9) com uma frente modesta onde somente o recorte da cimafronte em empena lhe confere o setecentismo.


Antonio Manetti, Giovanni da Gaiole e Salvi d'Andrea foram os arquitectos que se seguiram na conclusão da obra. 
Figura 3.9 . Basílica Menor de Santo Spirito . Fachada do séc. XVII . 1444/87 . Florença 
A imagem do exterior da igreja, tal como se encontra, com o perímetro feito de planos absolutamente lisos, incluindo a fachada principal, difere substancialmente da proposta inicial. 
Figura 3.10. Planta da Basílica Menor de Santo Spirito . 1444/87 . Florença . Filippo Brunellschi 
A planta original da igreja (figura 3.10) tem várias leituras possíveis. Primeira, e que acabou por não corresponder à realização material, é o seu contorno ser proposto em semicilindros, cada um correspondendo à unidade geradora de toda a planta da igreja. Segunda, é a célula espacial que compõe todo o interior, marcando cada tramo em que se dividem as naves laterais que, além de acompanharem a nave central, acompanham todo o desenho da cruz latina que compõe a nave central, o transepto e a capela-mor, como se fosse oferecido um deambulatório contínuo em torno do corpo interior da igreja. Cada célula é composta por quatro apoios verticais  sobre os quais se apoia uma cúpula esférica com as perxinas incorporadas. 
Figura 3.11 . Basílica Menor de Santo Spirito . planta . 1444/87 . Florença . Filippo Brunelleschi
Os espaços correspondentes à capela-mor, ao cruzeiro e a cada um dos braços do transepto, além de iguais, correspondem a quatro das unidades espaciais, dispostas em quadrado. O corpo da nave central corresponde a quatro vezes cada um dos espaços agora referidos, ms dispostos em linha recta. 
No cruzeiro implanta-se um baldaquino (figura 3.11) que contribui para que a percepção espacial seja a de uma igreja de cruz grega, ou de planta centralizada, como tentarei explicar. 
Com efeito, através da planta da igreja (figura 3.10), podemos, mais uma vez, verificar que a capela-mor bem como cada um dos braços do transepto são iguais. Nos topos destas unidades espaciais, de planta quadrada, insere-se uma coluna sobre a qual descarregam dois arcos. Essa coluna fica "estranhamente" no centro do campo de visão. Ora este “entrave” de um elemento sólido em vez de um vão, como seria norma, faz com que na cadência a que o percurso de entrada nos impõe, não nos demos conta de que houve qualquer interrupção e, assim, parecer estarmos numa planta centralizada, tal como na Sacristia Velha, em que não se pode alcançar fisicamente o centro. Na Sacristia Velha pela localização do túmulo, aqui pela existência do baldaquino. 
Figura 3.12 . Igreja de Santo Spirito . Nave lateral . 1444/87 . Florença . Filippo Brunelleschi
Ainda que o sistema estrutural siga a mesma lógica da Igreja de São Lourenço, com os “fragmentos” de um entablamento sobrepostos às colunas coríntias, nas paredes onde se abrem os nichos laterais, em vez de pilastras, como em São Lourenço, Santo Spirito apresenta meias colunas adossadas às paredes divisórias dos nichos (figura 3.12). Estes arcos, que são formeiros dos nichos laterais, conjuntamente com os dois torais das naves laterais e o formeiro da nave principal perfazem o módulo espacial que corre todo o perímetro do espaço da igreja. Contrariamente ao tecto da nave da igreja, que é plano, os módulos referidos, que também constituem as naves laterais, são cobertos por cúpulas, de planta quadrada, e as capelas são coroadas por semicúpulas. 

Ainda que hoje se saiba que durante muitos anos a autoria da Capela dei Pazzi (figura 3.13) estivesse atribuída a Brunelleschi, supondo-se, afinal, não ser, não quero deixar aqui de referir um dos alçados mais inusitados de toda a História da Arquitectura Moderna. E é precisamente a fachada principal do templo, fachada essa que é resolvida através de uma galilé ou pórtico, se assim se lhe quisermos chamar. Mas prefiro usar o termo serliana, ainda que apresente uma duplicação dos lumes porticados, dos lumes a, algo insólito como também insólito é o ático, de forte expressão, ser invadido pelo arco - o lume b - e o remate superior ser ser um "entablamento-guarda" da varanda aberta. 
Figura 3.13. Capela dei Pazzi . Florença
Como se define e porquê o nome de SERLIANA, se também a referência a esta abertura seja denominada JANELA de PALLADIO ou simplesmente MOTIVO PALLADIANO? 

Com efeito, é uma das invenções mais espantosas e grandiosas da Arte de Arquitectar. 
Ao pretender-se um rasgamento de grande largura em construção parietal de pedra, é consabido que a pedra é um material resistente à compressão, não admitindo vãos de grandes dimensões, para o que é necessário um material que trabalhe à tracção. Portanto, o arquitecto que inventou a possibilidade de vencer um vão grande de construção pétrea, sem o tornar "contra-natura", dividiu-o em três tramos. Mas, ao fazer esta divisão, inculcou-lhe um ritmo de espaços, ou lumes, a b a, sendo a mais estreito que b e, além disso, teve a genialidade de distinguir o processo de limitação superior ou, mais explicitamente, o processo de fecho das padieiras. Assim, os vãos mais estreitos são fechados por verga recta, formando um pórtico, e o vão central e mais largo, é colmatado por arco. Deste modo, o vão é composto por três lumes separados por dois elementos verticais, pilares ou colunas. É curioso verificar-se que a serliana se torna mais elegante se os tramos a forem substancialmente menores que o tramo central b. Pelo menos é o que, depois de observados inúmeros casos, me parece como mais consubstanciada esta descoberta arquitectónica. 
Figura 3.14 . Serliana da Villa Adriana . sec. II . Tivoli Figura 38 . Serliana do portal do Tribunal Constitucional séc. XVIII . Lisboa

Talvez que consiga consensos ao mostrar duas serlianas (figura 3.14), distanciadas no tempo, por séculos, a romana (da esquerda)  que, pelo meu parecer, estará nos limites do razoável com os tramos a quase igualando-se ao tramo b, e a de Lisboa (da direita), no extremo oposto de dimensão dos tramos a reduzidos quase ao ilógico, isto é, ao inexistente, somente aludidos pelo espaçamento que os capitéis, mais largos que os fustes, provocam no encontro com as paredes laterais. 
Figura 3.15 . Villa Medici . 1630 ca. Diego Velasquez
Mesmo que a diferença entre os vãos porticados e o vão arqueado seja mais próxima, penso que o limite poderá estar no “Jardim da Villa Medici”, em Roma, pintado por Diego Velasquez, que a figura 3.15 ilustra. 

Ainda que tenha sido Sebastiano Serlio o grande teórico e arquitecto renascentista a consagrar, no seu tratado, este tipo de abertura, e daí a designação de SERLIANA, foi através da obra de Palladio, concretamente da Basílica de Vicenza, que se divulgou a serliana como MOTIVO DE PALLADIO. Uma das características mais esmeradas das serlianas é o facto de os entablamentos sobre os vãos porticados geralmente constarem unicamente de arquitrave e cornija, prescindindo-se do friso, assim adelgaçando todo o perfil da moldura do vão tripartido. Também algo de semelhante oferece o arco, conforme a própria Basílica de Vicenza (figura 3.16) nos evidencia. 
Figura 3.16 . Serliana da Basílica de Vicenza . séc. XVI . Andrea Palladio (representado em estátua)
Ainda uma última nota sobre a serliana e não menos importante: 
SERLIANA agrega, num mesmo vão, a consagração de uma espécie de simbiose entre a arquitettura alla moderna versus arquitectura all'antica.
a seguir (22NOV18):
4
LEON BATTISTA ALBERTI
de Rimini a Mântua

1 comentário:

  1. Sou capaz de ver e ficar encantado. Mas para observar é preciso saber. Estou aprendendo. Obrigado.

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